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MINIBIBLIOTECALDAS - AVALIAÇÃO


    Para vocês, no mês em que comemoramos mais um 

 ano, fatias virtuais do bolo de  aniversário.

 Em retribuição, participem de nossa pesquisa

.dizendo se já retiraram algum livro das  MinibiblioteCaldas, 

.comentando sobre nosso blog e sobre a página no  Facebook, 

.dando sugestões e fazendo críticas. 

                                  Agradecemos sua participação!




A arte de viver em Paz- Pierre Weil

O que é a Paz? 

"Mais do que ausência de conflito, é um estado de consciência. Ela não deve ser procurada no mundo externo, mas principalmente no interior de cada homem, comunidade ou nação.""A paz está dentro de nós ou então não existe." 


Assim o autor de "A arte de viver a Paz" assinala que, mais importante para a manutenção da paz do que o desarmamento, a punição jurídica ou econômica, é o desarmamento dos espíritos.

Neste livro, Pierre Weil cita o Ato Constitutivo da Unesco: "...as guerras nascem na mente dos homens e é nela, primeiramente, que devem ser erguidas as defesas da Paz.".
O autor pede uma visão holística da Paz, ou seja, um ponto de vista não fragmentário que abranja o aspecto pessoal ( felicidade interior do ser humano), a harmonia social (dentro das comunidades e entre elas, assim como entre as nações) e a relação equilibrada com o meio ambiente ( o planeta e o universo ).

Dentro do ser humano, segundo Pierre Weil, existem estímulos naturais para o cultivo da Paz: 

. a alegria;

. o amor altruísta;

. a compaixão.

Na História da Humanidade, por isto, encontramos seres iluminados que abriram portais lutando, trabalhando e mesmo oferecendo suas vidas para o cultivo da Paz.
Infelizmente, ressalta o autor, existem as emoções destrutivas.É preciso saber transformá-las através de métodos de apoio, como os psicoterápicos; ou por métodos milenares de não-violência ou resistência pacífica que são baseados em um profundo respeito a toda manifestação de vida; o método chamado "consciência imediata", pelo qual, ao tomarmos consciência de sentimentos destrutivos, quando eles ainda estão germinando em nosso coração, torna-se mais fácil transformá-los em energia construtiva.

Quem é o autor?

Pierre Weil nasceu em 1924 em Estrasburgo,Alsácia, junto à fronteira França/Alemanha. Viveu também  em Paris e, depois de conhecer nosso pais, adotou o Brasil como sua terra e seu lar, aqui permanecendo, trabalhando como psicólogo e professor, publicando dezenas de  livros aqui e em muitos outros países. Recebeu o prêmio Unesco de Educação para a Paz, em Paris e criou o Colégio Internacional dos Terapeutas. Sua obra maior é a Unipaz criada no Brasil, mas que se expandiu para outras nações e que se dedica ao desenvolvimento da Cultura transdisciplinar e holística da Paz. Sua morte ocorreu no ano de 2008.



NOITE DE ALMIRANTE

                                            Machado de Assis
Deolindo Venta-Grande (era uma alcunha de bordo) saiu do arsenal de marinha e enfiou pela rua de Bragança. Batiam três horas da tarde. Era a fina flor dos marujos e, de mais, levava um grande ar de felicidade nos olhos. A corveta dele voltou de uma longa viagem de instrução, e Deolindo veio à terra tão depressa alcançou licença. Os companheiros disseram-lhe, rindo:
- Ah! Venta-Grande! Que noite de almirante vai você passar! ceia, viola e os braços de Genoveva. Colozinho de Genoveva...
Deolindo sorriu. Era assim mesmo, uma noite de almirante, como eles dizem, uma dessas grandes noites de almirante que o esperava em terra. Começara a paixão três meses antes de sair a corveta. Chamava-se Genoveva, caboclinha de vinte anos, esperta, olho negro e atrevido. Encontraram-se em casa de terceiro e ficaram morrendo um pelo outro, a tal ponto que estiveram prestes a dar uma cabeçada, ele deixaria o serviço e ela o acompanharia para a vila mais recôndita do interior.
A velha Inácia, que morava com ela, dissuadiu-os disso; Deolindo não teve remédio senão seguir em viagem de instrução. Eram oito ou dez meses de ausência. Como fiança recíproca, entenderam dever fazer um juramento de fidelidade.
- Juro por Deus que está no céu. E você?
- Eu também.
- Diz direito.
- Juro por Deus que está no céu; a luz me falte na hora da morte.
Estava celebrado o contrato. Não havia descrer da sinceridade de ambos; ela chorava doidamente, ele mordia o beiço para dissimular. Afinal separaram-se, Genoveva foi ver sair a corveta e voltou para casa com um tal aperto no coração que parecia que "lhe ia dar uma coisa". Não lhe deu nada, felizmente; os dias foram passando, as semanas, os meses, dez meses, ao cabo dos quais, a corveta tornou e Deolindo com ela.
Lá vai ele agora, pela rua de Bragança, Prainha e Saúde, até ao princípio da Gamboa, onde mora Genoveva. A casa é uma rotulazinha escura, portal rachado do sol, passando o cemitério dos Ingleses; lá deve estar Genoveva, debruçada à janela, esperando por ele. Deolindo prepara uma palavra que lhe diga. Já formulou esta: "Jurei e cumpri", mas procura outra melhor. Ao mesmo tempo lembra as mulheres que viu por esse mundo de Cristo, italianas, marselhesas ou turcas, muitas delas bonitas, ou que lhe pareciam tais. Concorda que nem todas seriam para os beiços dele, mas algumas eram, e nem por isso fez caso de nenhuma. Só pensava em Genoveva. A mesma casinha dela, tão pequenina, e a mobília de pé quebrado, tudo velho e pouco, isso mesmo lhe lembrava diante dos palácios de outras terras. Foi à custa de muita economia que comprou em Trieste um par de brincos, que leva agora no bolso com algumas bugigangas. E ela que lhe guardaria? Pode ser que um lenço marcado com o nome dele e uma âncora na ponta, porque ela sabia marcar muito bem. Nisto chegou à Gamboa, passou o cemitério e deu com a casa fechada. Bateu, falou-lhe uma voz conhecida, a da velha Inácia, que veio abrir-lhe a porta com grandes exclamações de prazer. Deolindo, impaciente, perguntou por Genoveva.
- Não me fale nessa maluca, arremeteu a velha. Estou bem satisfeita com o conselho que lhe dei. Olhe lá se fugisse. Estava agora como o lindo amor.
- Mas que foi? que foi?
A velha disse-lhe que descansasse, que não era nada, uma dessas coisas que aparecem na vida; não valia a pena zangar-se. Genoveva andava com a cabeça virada...
- Mas virada por quê?
- Está com um mascate, José Diogo. Conheceu José Diogo, mascate de fazendas? Está com ele. Não imagina a paixão que eles têm um pelo outro. Ela então anda maluca. Foi o motivo da nossa briga. José Diogo não me saía da porta; eram conversas e mais conversas, até que eu um dia disse que não queria a minha casa difamada. Ah! meu pai do céu! foi um dia de juízo. Genoveva investiu para mim com uns olhos deste tamanho, dizendo que nunca difamou ninguém e não precisava de esmolas. Que esmolas, Genoveva? O que digo é que não quero esses cochichos à porta, desde as aves-marias... Dois dias depois estava mudada e brigada comigo.
- Onde mora ela?
- Na praia Formosa, antes de chegar à pedreira, uma rótula pintada de novo.
Deolindo não quis ouvir mais nada. A velha Inácia, um tanto arrependida, ainda lhe deu avisos de prudência, mas ele não os escutou e foi andando. Deixo de notar o que pensou em todo o caminho; não pensou nada. As idéias marinhavam-lhe no cérebro, como em hora de temporal, no meio de uma confusão de ventos e apitos. Entre elas rutilou a faca de bordo, ensangüentada e vingadora. Tinha passado a Gamboa, o Saco do Alferes, entrara na praia Formosa. Não sabia o número de casa, mas era perto da pedreira, pintada de novo, e com auxílio da vizinhança poderia achá-la. Não contou com o acaso que pegou de Genoveva e fê-la sentar à janela, cosendo, no momento em que Deolindo ia passando. Ele conheceu-a e parou; ela, vendo o vulto de um homem, levantou os olhos e deu com o marujo.
- Que é isso? exclamou espantada. Quando chegou? Entre, seu Deolindo.
E, levantando-se, abriu a rótula e fê-lo entrar. Qualquer outro homem ficaria alvoroçado de esperanças, tão francas eram as maneiras da rapariga; podia ser que a velha se enganasse ou mentisse; podia ser mesmo que a cantiga do mascate estivesse acabada. Tudo isso lhe passou pela cabeça, sem a forma precisa do raciocínio ou da reflexão, mas em tumulto e rápido. Genoveva deixou a porta aberta, fê-lo sentar-se, pediu-lhe notícias da viagem e achou-o mais gordo; nenhuma comoção nem intimidade. Deolindo perdeu a última esperança. Em falta de faca, bastavam-lhe as mãos para estrangular Genoveva, que era um pedacinho de gente, e durante os primeiros minutos não pensou em outra coisa.
- Sei tudo, disse ele.
- Quem lhe contou?
Deolindo levantou os ombros.
- Fosse quem fosse, tornou ela, disseram-lhe que eu gostava muito de um moço?
- Disseram.
- Disseram a verdade.
Deolindo chegou a ter um ímpeto; ela fê-lo parar só com a ação dos olhos. Em seguida disse que, se lhe abrira a porta, é porque contava que era homem de juízo. Contou-lhe então tudo, as saudades que curtira, as propostas do mascate, as suas recusas, até que um dia, sem saber como, amanhecera gostando dele.
- Pode crer que pensei muito e muito em você. Sinhá Inácia que lhe diga se não chorei muito... Mas o coração mudou... Mudou... Conto-lhe tudo isto, como se estivesse diante do padre, concluiu sorrindo.
Não sorria de escárnio. A expressão das palavras é que era uma mescla de candura e cinismo, de insolência e simplicidade, que desisto de definir melhor. Creio até que insolência e cinismo são mal aplicados. Genoveva não se defendia de um erro ou de um perjúrio; não se defendia de nada; faltava-lhe o padrão moral das ações. O que dizia, em resumo, é que era melhor não ter mudado, dava-se bem com a afeição do Deolindo, a prova é que quis fugir com ele; mas, uma vez que o mascate venceu o marujo, a razão era do mascate, e cumpria declará-lo. Que vos parece? O pobre marujo citava o juramento de despedida, como uma obrigação eterna, diante da qual consentira em não fugir e embarcar: "Juro por Deus que está no céu; a luz me falte na hora da morte". Se embarcou, foi porque ela lhe jurou isso. Com essas palavras é que andou, viajou, esperou e tornou; foram elas que lhe deram a força de viver. Juro por Deus que está no céu; a luz me falte na hora da morte...
- Pois, sim, Deolindo, era verdade. Quando jurei, era verdade. Tanto era verdade que eu queria fugir com você para o sertão. Só Deus sabe se era verdade! Mas vieram outras coisas... Veio este moço e eu comecei a gostar dele...
- Mas a gente jura é para isso mesmo; é para não gostar de mais ninguém...
- Deixa disso, Deolindo. Então você só se lembrou de mim? Deixa de partes...
- A que horas volta José Diogo?
- Não volta hoje.
- Não?
- Não volta; está lá para os lados de Guaratiba com a caixa; deve voltar sexta-feira ou sábado... E por que é que você quer saber? Que mal lhe fez ele?
Pode ser que qualquer outra mulher tivesse igual palavra; poucas lhe dariam uma expressão tão cândida, não de propósito, mas involuntariamente. Vede que estamos aqui muito próximos da natureza. Que mal lhe fez ele? Que mal lhe fez esta pedra que caiu de cima? Qualquer mestre de física lhe explicaria a queda das pedras. Deolindo declarou, com um gesto de desespero, que queria matá-lo. Genoveva olhou para ele com desprezo, sorriu de leve e deu um muxoxo; e, como ele lhe falasse de ingratidão e perjúrio, não pôde disfarçar o pasmo. Que perjúrio? que ingratidão? Já lhe tinha dito e repetia que quando jurou era verdade. Nossa Senhora, que ali estava, em cima da cômoda, sabia se era verdade ou não. Era assim que lhe pagava o que padeceu? E ele que tanto enchia a boca de fidelidade, tinha-se lembrado dela por onde andou?
A resposta dele foi meter a mão no bolso e tirar o pacote que lhe trazia. Ela abriu-o, aventou as bugigangas, uma por uma, e por fim deu com os brincos. Não eram nem poderiam ser ricos; eram mesmo de mau gosto, mas faziam uma vista de todos os diabos. Genoveva pegou deles, contente, deslumbrada, mirou-os por um lado e outro, perto e longe dos olhos, e afinal enfiou-os nas orelhas; depois foi ao espelho de pataca, suspenso na parede, entre a janela e a rótula, para ver o efeito que lhe faziam. Recuou, aproximou-se, voltou a cabeça da direita para a esquerda e da esquerda para a direita.
- Sim, senhor, muito bonitos, disse ela, fazendo uma grande mesura de agradecimento. Onde é que comprou?
Creio que ele não respondeu nada, não teria tempo para isso, porque ela disparou mais duas ou três perguntas, uma atrás da outra, tão confusa estava de receber um mimo a troco de um esquecimento. Confusão de cinco ou quatro minutos; pode ser que dois. Não tardou que tirasse os brincos, e os contemplasse e pusesse na caixinha em cima da mesa redonda que estava no meio da sala. Ele pela sua parte começou a crer que, assim como a perdeu, estando ausente, assim o outro, ausente, podia também perdê-la; e, provavelmente, ela não lhe jurara nada.
- Brincando, brincando, é noite, disse Genoveva.
Com efeito, a noite ia caindo rapidamente. Já não podiam ver o hospital dos Lázaros e mal distinguiam a ilha dos Melões; as mesmas lanchas e canoas, postas em seco, defronte da casa, confundiam-se com a terra e o lodo da praia. Genoveva acendeu uma vela. Depois foi sentar-se na soleira da porta e pediu-lhe que contasse alguma coisa das terras por onde andara. Deolindo recusou a princípio; disse que se ia embora, levantou-se e deu alguns passos na sala. Mas o demônio da esperança mordia e babujava o coração do pobre diabo, e ele voltou a sentar-se, para dizer duas ou três anedotas de bordo. Genoveva escutava com atenção. Interrompidos por uma mulher da vizinhança, que ali veio, Genoveva fê-la sentar-se também para ouvir "as bonitas histórias que o Sr. Deolindo estava contando". Não houve outra apresentação. A grande dama que prolonga a vigília para concluir a leitura de um livro ou de um capítulo, não vive mais intimamente a vida dos personagens do que a antiga amante do marujo vivia as cenas que ele ia contando, tão livremente interessada e presa, como se entre ambos não houvesse mais que uma narração de episódios. Que importa à grande dama o autor do livro? Que importava a esta rapariga o contador dos episódios?
A esperança, entretanto, começava a desampará-lo e ele levantou-se definitivamente para sair. Genoveva não quis deixá-lo sair antes que a amiga visse os brincos, e foi mostrar-lhos com grandes encarecimentos. A outra ficou encantada, elogiou-os muito, perguntou se os comprara em França e pediu a Genoveva que os pusesse.
- Realmente, são muito bonitos.
Quero crer que o próprio marujo concordou com essa opinião. Gostou de os ver, achou que pareciam feitos para ela e, durante alguns segundos, saboreou o prazer exclusivo e superfino de haver dado um bom presente; mas foram só alguns segundos.
Como ele se despedisse, Genoveva acompanhou-o até à porta para lhe agradecer ainda uma vez o mimo, e provavelmente dizer-lhe algumas coisas meigas e inúteis. A amiga, que deixara ficar na sala, apenas lhe ouviu esta palavra: "Deixa disso, Deolindo"; e esta outra do marinheiro: "Você verá." Não pôde ouvir o resto, que não passou de um sussurro.
Deolindo seguiu, praia fora, cabisbaixo e lento, não já o rapaz impetuoso da tarde, mas com um ar velho e triste, ou, para usar outra metáfora de marujo, como um homem "que vai do meio caminho para terra". Genoveva entrou logo depois, alegre e barulhenta. Contou à outra a anedota dos seus amores marítimos, gabou muito o gênio do Deolindo e os seus bonitos modos; a amiga declarou achá-lo grandemente simpático.
- Muito bom rapaz, insistiu Genoveva. Sabe o que ele me disse agora?
- Que foi?
- Que vai matar-se.
- Jesus!
- Qual o quê! Não se mata, não. Deolindo é assim mesmo; diz as coisas, mas não faz. Você verá que não se mata. Coitado, são ciúmes. Mas os brincos são muito engraçados.
- Eu aqui ainda não vi destes.
- Nem eu, concordou Genoveva, examinando-os à luz. Depois guardou-os e convidou a outra a coser. - Vamos coser um bocadinho, quero acabar o meu corpinho azul...

A verdade é que o marinheiro não se matou. No dia seguinte, alguns dos companheiros bateram-lhe no ombro, cumprimentando-o pela noite de almirante, e pediram-lhe notícias de Genoveva, se estava mais bonita, se chorara muito na ausência, etc. Ele respondia a tudo com um sorriso satisfeito e discreto, um sorriso de pessoa que viveu uma grande noite. Parece que teve vergonha da realidade e preferiu mentir.

Sobre o autor:
Joaquim Maria Machado de Assis, nascido em 1839, é considerado o maior nome da literatura nacional. Foi poeta, cronista, dramaturgo, contista, folhetinista, jornalista e crítico literário. Sua obra constitui-se em nove romances e peças teatrais, 200 contos, cinco coletâneas de poemas e sonetos e mais de 600 crônicas. Veio a falecer em 1908, aos 79 anos de idade.
Fonte: http://www.superdownloads.com.br/

Por Adele

Entrevista: Fernando Rocha Brant



ENTREVISTA COM FERNANDO ROCHA BRANT PUBLICADA NO JORNAL SONHA CALDAS, NÚMERO  28,  MARÇO DE 2009.
AQUI NÓS A REPRODUZIMOS POR SOLICITAÇÃO DE NOSSOS AMIGOS CALDENSES.

Sonha Caldas: Você nasceu em Caldas, mas sua família mudou-se quando você era criança. Algumas recordações da cidade ou algum comentário de seus pais sobre sua terra natal ficaram em sua memória?

Fernando: Aí vai um trecho de uma crônica que escrevi sobre minha volta a Caldas, cinquenta anos depois de ter me mudado, aos cinco anos de idade, para Diamantina. Penso que, com este texto eu respondo à sua pergunta:
“De que lugares eu me lembro para poder recordar, se minha memória são apenas sombras, neblinas, pedaços esparsos de uma pequena vida? Existem duas igrejas, uma de cada lado da rua ou praça principal. Eu estou correndo de um velho maluco que quer me pegar, sou esperto e chego primeiro ao portão de casa da família. Eu me fechei dentro de um armário e, quando me acham, eu vomito inteiro o queijo que devorara. Há um cheiro  de milho assado vindo do fundo do fórum onde meu pai trabalhava. Meu irmão mais velho chega apavorado contando coisas que não entendo. Chora e vomita e eu vomito atrás. Homens e mulheres cantam em serenata para meus pais na madrugada fria e só muito tempo depois é que eu vou saber que o canto é de despedida. Meu pai me castiga e, por desaforo, eu compro uma barra de chocolate e coloco em sua conta no armazém.
Eu fui aquele criança feliz que nasceu ali naquela pequena cidade mineira chamada Caldas, chamada Parreiras e novamente Caldas.

Sonha Caldas: É verdade que, coincidentemente, quando você e Milton Nascimento fizeram juntos a maravilhosa “Travessia” comemoraram tomando vinho de Caldas?

Fernando: É verdade. Meu pai, Juiz de Direito, deixou muitos amigos e boas lembranças de Caldas. Desde que foi transferido para Diamantina, ele recebia, periodicamente, uma boa remessa de vinhos  que ele consumia, com extrema moderação, na hora das refeições. Quando eu e o Milton nos encontramos, em minha casa em Belo Horizonte, para cantar nossa primeira parceria, uma dessas garrafas de meu pai foi devidamente bebida. Caldas estava lá, presente nessa momento tão importante para nós.

Sonha Caldas: Quando você voltou a Caldas? Quais suas impressões neste retorno?

Fernando: Reproduzo outra crônica, em que conto minhas impressões ao retornar à minha terra natal: “Saí da pequena cidade um pouco antes de completar cinco anos de idade.
Eu me lembrava, porém, de alguns fatos, casas e ruas que teimavam em ficar na minha memória. Seria verdade ou sonho, eu me perguntava passados cinquenta anos? A única maneira de esclarecer a questão era tomar o caminho de volta e rever a terra em que nasci e fui menino. Caldas deixaria de ser uma sombra em meus pensamentos para ser realidade. E existem as fotos minhas e de meus irmãos, uma escadinha que devia dar um trabalho dos diabos, principalmente quando todos pegavam, ao mesmo tempo, aquelas doenças próprias da infância. Eu sou aquele loirinho de cabelos cacheados, curativo no pé, que olha para o futuro sem saber o que é o futuro.
A ansiedade de entrar adulto no meu território da infância fez com que eu viajasse monossilábico os vinte quilômetros que separam minha pequena aldeia de bela Poços de Caldas. De repente, ao longe, contemplo o pequeno presépio que se anuncia ao pé da serra. Sempre um paredão de pedra a observar meus passos. Em Diamantina, o Espinhaço emoldurando os dias e noites de música, poesia, lua e cachaça. Em Belo Horizonte, a Serra do Curral guardando os sonhos dos homens e mulheres vindos de todas as terras de Minas. Minha cidade berço tem a vigiá-la a serra de Caldas. No meio do meu caminho sempre haverá uma pedra; plantarei a minha casa numa cidade de pedra.
Piso enfim o chão que me viu nascer, ando pelas ruas calçadas e limpas. De um lado a capela de Nossa Senhora do Patrocínio, padroeira do lugar. De outro, a igreja de Nossa Senhora do Rosário. No meio delas, uma singela casa onde respirei os primeiros ares, dei os primeiros passos, me pus à disposição da vida. Ela, minha primeira residência, continua do jeitinho que era, apenas tem vidros que fecham a varanda da entrada. E a grande escadaria da frente não passa de uma sucessão de meros três degraus. As casas conservam a arquitetura de antes. A rua principal, as árvores, o coreto, os jardins: nada parece ter mudado nas últimas décadas.
De súbito, uma festa toma conta da praça principal. Todos saem para a rua e um barulho de antigamente enche meus ouvidos de uma música inesquecível. Tenho a sorte bendita de voltar à minha terra no dia e hora de um grande desfile de carros de bois.
Carregados de lenha e de meninos, os carros enfeitados de alegria e rangendo sempre, são guiados por parelhas de bois que vendem saúde e beleza. Vão e voltam pela rua principal em procissão lenta e sonora. Nas calçadas, os caldenses aplaudem, comentam, festejam.
O espetáculo aguça a minha memória e eu me lembro do dia longínquo em que um carro de boi igual a esses levou lenha para minha casa. Finda a tarefa, o dono do carro de boi tocou os animais em frente. Eu, curioso como todo menino, segui junto ao lado dos bois. A paciência bovina também tem limites e eu me vi lançado por uma pata até o outro lado da rua. Não me machuquei pois a pequena distância que me separava do boi não permitiu que ele me aplicasse um coice de fato. Foi  meu primeiro voo. Os carros de bois e a cidade preservada me acenderam a felicidade da infância e eu, por momentos, tive um arrepio: a sensação de que, se estou aqui contando essa história, se estou aqui vivo, foi porque escapei por pouco. Como costuma acontecer com todos os meninos do mundo.

Sonha Caldas: Você e Milton Nascimento  fizeram canções lindíssimas. Algumas delas tocam com mais profundidade o seu coração ou todas são igualmente especiais?

Fernando: Todas são igualmente especiais, pois sempre criamos canções que exprimem nosso sentimento do mundo, nossa crenças, nossos amores, nossas amizades, nossa brasilidade, mineiridade, nosso jeito de ser e estar no mundo. Cada uma delas é um pedaço de nós.

Sonha Caldas: Você faz parceria com outros músicos também. Poderia citar-nos alguns deles e contar-nos quantas letras para músicas você já fez?

Fernando: A lista é grande. Tavinho Moura, Lô Borges, Wagner Tiso, Beto Guedes, Nélson Ângelo, Toninho Horta, Sirlan, Robertinho Brant, Tunai, Flávio Henrique, Ladston do Nascimento, Yuri Popoff e muitos outros, além de gente nova, boa de serviço, que vem surgindo por aí.
Estou coletando meus guardados para saber quantas canções eu fiz. São mais de trezentas, certamente.

Sonha Caldas: Suas letras musicais são verdadeiras poesias. Você se vê como poeta ou como músico?

Fernando: Não sou músico, mas tenho um bom ouvido musical. Tanto que  a maioria das minhas letras são feitas depois da melodia e da harmonia. Penso que a palavra inglesa para definir esse tipo de profissão é exata: escritor de canções.

Sonha Caldas: “Chico, o Caminhador”... fale-nos deste seu livro.

Fernando: Foi uma idéia de minha amiga, a ilustradora Ana Raquel. Ele visitou as margens pobres do Rio São Francisco, tirou fotos e em cima delas criou belíssimas imagens. Eu já tinha escrito, com o Tavinho Moura, a canção “ Chico, o Caminhador”. O livro, de minha parte, foi uma continuação da letra, que é seu ponto de partida. Eu fui letrando as imagens da mesma forma que faço com as músicas.
Sonha Caldas: Você gosta de cantar suas canções?

Fernando: Gosto. Antigamente, por ser parceiro de um dos maiores cantores do mundo, eu tinha um pouco de vergonha. Depois descobri que cantar é um direito humano, desde  que você não desafine nem ataque os ouvidos alheios.
Tenho  feito shows, com o Tavinho Moura, há muitos anos. Voz, violão e os autores.
Daí saiu o nosso CD chamado “ Conspiração dos Poetas. Vamos cantando por aí.

Sonha Caldas:  Quais são suas prioridades culturais  no momento ?


Fernando: Continuar a fazer o que gosto: canções. Escrever outros tipos de textos, talvez alguns musicais para o palco . Ler.  Ouvir música. Enfim, como poeta é aquele que faz, seguir fazendo. 


Microscópio


                                                                                         Humberto de Campos

Os salões do desembargador Marcelino Pedreira, à rua São Clemente, achavam-se repletos, como poucas vezes acontecia, naquela noite memorável. Políticos, magistrados, médicos, bacharéis, homens de letras e homens de negócios enchiam os grandes compartimentos do palacete magnífico, de mistura com o que há de mais fino, de mais chic, de mais distinto, nas rodas femininas do Rio. Lauro Müller, Miguel Couto, Pires do Rio, Antônio Azeredo, são silhuetas em evidência. O encanto da reunião está, entretanto, na revoada de moças e senhoras que volteiam pelas salas, e entre as quais se destaca, pela formosura, pela mocidade, pela inocência do olhar e dos modos, Mlle. Júlia Petersen, noiva do Dr. Abelardo Moura e filha única do desembargador Feliciano Mendonça.
De repente, como se um punhado de folhas e flores obedecesse a um redemoinho invisível, faz-se uma roda em torno a uma das mesas da sala de chá. Homens de ciência e damas inteligentes formam o grupo. Elevada, culta, a palestra versa os assuntos mais variados, encantando as senhoras.
Na sala contígua, dança-se. E, entre os pares, o Dr. Abelardo e a noiva. Súbito, parando, põem-se os dois a conversar:
— Que mãos tens tu, Julita! — elogia o noivo, maravilhado, apertando os dedos miúdos, finos, quase infantis, da sua prometida.
— Acha-a pequena? — indaga a moça.
— Microscópica!
— Como?
— Microscópica! — insiste o rapaz.
Intrigada com o vocábulo, que ouvia pela primeira vez, a moça pede licença por um instante, penetra no salão de chá e, com a sua ingenuidade, indaga do Dr. Álvaro Osório:
— Doutor, que significa “microscópico?”
— É um derivado de “microscópio”, Mademoiselle! — explica o ilustre fisiologista.
— E que é “microscópio”? — torna a menina, franzindo a testa morena, que os olhos iluminam.
O Dr. Álvaro medita um momento, e, para não perder tempo, explica:
— É um aparelho que faz as coisas crescerem. Compreende?
A menina sorri, agradecida. De repente, porém, pisca os olhos, franze mais a testa, e enrubescendo:
— Ahn!...
Morde o dedinho róseo, meio brejeira, meio encabulada:
— Sem vergonha! Agora é que eu compreendo porque é que ele diz que eu tenho a mão microscópica ...
E sai correndo, vermelha, a abraçar-se com o noivo.

Texto extraído do livro "Gansos do Capitólio", W. M. Jackson Inc. Editores, 1951, pág. 80.

Sobre o autor:
Humberto de Campos Veras, jornalista, político, crítico, cronista, contista, poeta, biógrafo e memorialista, nasceu em Miritiba, hoje Humberto de Campos, MA, em 25 de outubro de 1886, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 5 de dezembro de 1934. Foram seus pais Joaquim Gomes de Faria Veras, pequeno comerciante, e Ana de Campos Veras. Perdendo o pai aos seis anos, Humberto de Campos deixou a cidade natal e foi levado para São Luís. Dali, aos 17 anos, passou a residir no Pará, onde conseguiu um lugar de colaborador e redator na "Folha do Norte" e, pouco depois, na Província do Pará. Em 1910 publicou seu primeiro livro, a coletânea de versos intitulada “Poeira”, primeira série. Em 1912 transferiu-se para o Rio. Entrou para o jornal “O Imparcial”, na fase em que ali trabalhava um grupo de escritores ilustres, como redatores ou colaboradores, entre os quais Goulart de Andrade, Rui Barbosa, José Veríssimo, Júlia Lopes de Almeida, Salvador de Mendonça e Vicente de Carvalho. João Ribeiro era o crítico literário. Ali também José Eduardo de Macedo Soares renovava a agitação da segunda campanha civilista. Humberto de Campos ingressou no movimento. Logo depois o jornalista militante deu lugar ao intelectual. Fez essa transição com o pseudônimo de Conselheiro XX com que assinava contos e crônicas, hoje reunidos em vários volumes. Assinava também com os pseudônimos Almirante Justino Ribas, Luís Phoca, João Caetano, Giovani Morelli, Batu-Allah, Micromegas e Hélios.
Eleito em 30 de outubro de 1919 para a Cadeira nº. 20, sucedendo a Emílio de Menezes, foi recebido em 8 de maio de 1920, pelo acadêmico Luís Murat.
Em 1920, já acadêmico, foi eleito deputado federal pelo Maranhão. Em 1923, substituiu Múcio Leão na coluna de crítica do jornal “Correio da Manhã”. A revolução de 1930 dissolveu o Congresso e ele perdeu seu mandato. O presidente Getúlio Vargas, que era grande admirador do talento de Humberto de Campos, procurou minorar as dificuldades do autor de “Poeira”, dando-lhe os lugares de inspetor de ensino e de diretor da Casa de Rui Barbosa. Em 1931, viajou ao Prata em missão cultural. Em 1933 publicou o livro que se tornou o mais célebre de sua obra, “Memórias”, crônica dos começos de sua vida. O seu “Diário secreto”, de publicação póstuma, provocou grande escândalo pela irreverência e malícia em relação a contemporâneos.
Autodidata, grande ledor, acumulou vasta erudição, que usava nas crônicas. Poeta neoparnasiano, fez parte do grupo da fase de transição anterior a 1922. "Poeira" é um dos últimos livros da escola parnasiana no Brasil. Fez também crítica literária de natureza impressionista. É uma crítica de afirmações pessoais, que não se fundamentam em critérios e, por isso, não podem ser endossadas nem verificadas. Na crônica, seu recurso mais corrente era tomar conhecidas narrativas e dar-lhes uma forma nova, fazendo comentários e digressões sobre o assunto, citando anedotas e tecendo comparações com outras obras. No fundo ou na essência, era uma crítica superficial, que não resiste à análise nem ao tempo. 
Obras: Poeira, poesia, 2 séries (1910 e 1917); Da seara de Booz, crônicas (1918); Vale de Josaphat, contos (1918); Tonel de Diógenes, contos (1920); A serpente de bronze, contos (1921); Mealheiro de Agripa, vária (1921); Carvalhos e roseiras, crítica (1923); A bacia de Pilatos, contos (1924); Pombos de Maomé, contos (1925); Antologia dos humoristas galantes (1926); Grãos de mostarda, contos (1926); Alcova e salão, contos (1927); O Brasil anedótico, anedotas (1927); Antologia da Academia Brasileira de Letras (1928); O monstro e outros contos (1932); Memórias 1886-1900 (1933); Crítica, 4 séries (1933, 1935, 1936); Os países, vária (1933); Poesias completas (1933); À sombra das tamareiras, contos (1934); Sombras que sofrem, crônicas (1934); Um sonho de pobre, memórias (1935); Destinos, vária (1935); Lagartas e libélulas, vária (1935); Memórias inacabadas (1935); Notas de um diarista, 2 séries (1935 e 1936); Reminiscências, memórias (1935); Sepultando os meus mortos, memórias (1935); Últimas crônicas (1936); Perfis, 2 séries, biografias (1936); Contrastes, vária (1936); O arco de Esopo, contos (1943); A funda de Davi, contos (1943); Gansos do Capitólio, contos (1943); Fatos e feitos, vária (1949); Diário secreto, 2 vols. (1954). (Dados obtidos no sítio da Academia Brasileira de Letras).
Autodidata, grande ledor, acumulou vasta erudição, que usava nas crônicas. Poeta neoparnasiano, fez parte do grupo da fase de transição anterior a 1922. "Poeira" é um dos últimos livros da escola parnasiana no Brasil. Fez também crítica literária de natureza impressionista. É uma crítica de afirmações pessoais, que não se fundamentam em critérios e, por isso, não podem ser endossadas nem verificadas. Na crônica, seu recurso mais corrente era tomar conhecidas narrativas e dar-lhes uma forma nova, fazendo comentários e digressões sobre o assunto, citando anedotas e tecendo comparações com outras obras. No fundo ou na essência, era uma crítica superficial, que não resiste à análise nem ao tempo. 
Obras: Poeira, poesia, 2 séries (1910 e 1917); Da seara de Booz, crônicas (1918); Vale de Josaphat, contos (1918); Tonel de Diógenes, contos (1920); A serpente de bronze, contos (1921); Mealheiro de Agripa, vária (1921); Carvalhos e roseiras, crítica (1923); A bacia de Pilatos, contos (1924); Pombos de Maomé, contos (1925); Antologia dos humoristas galantes (1926); Grãos de mostarda, contos (1926); Alcova e salão, contos (1927); O Brasil anedótico, anedotas (1927); Antologia da Academia Brasileira de Letras (1928); O monstro e outros contos (1932); Memórias 1886-1900 (1933); Crítica, 4 séries (1933, 1935, 1936); Os países, vária (1933); Poesias completas (1933); À sombra das tamareiras, contos (1934); Sombras que sofrem, crônicas (1934); Um sonho de pobre, memórias (1935); Destinos, vária (1935); Lagartas e libélulas, vária (1935); Memórias inacabadas (1935); Notas de um diarista, 2 séries (1935 e 1936); Reminiscências, memórias (1935); Sepultando os meus mortos, memórias (1935); Últimas crônicas (1936); Perfis, 2 séries, biografias (1936); Contrastes, vária (1936); O arco de Esopo, contos (1943); A funda de Davi, contos (1943); Gansos do Capitólio, contos (1943); Fatos e feitos, vária (1949); Diário secreto, 2 vols. (1954). (Dados obtidos no sítio da Academia Brasileira de Letras).
                             Fonte: releituras


Por Adele