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MINIBIBLIOTECALDAS - AVALIAÇÃO
Para vocês, no mês em que comemoramos mais um
ano, fatias virtuais do bolo de aniversário.
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Acontece
A arte de viver em Paz- Pierre Weil
O que é a Paz?
"Mais do que ausência de conflito, é um estado de consciência. Ela não deve ser procurada no mundo externo, mas principalmente no interior de cada homem, comunidade ou nação.""A paz está dentro de nós ou então não existe."Assim o autor de "A arte de viver a Paz" assinala que, mais importante para a manutenção da paz do que o desarmamento, a punição jurídica ou econômica, é o desarmamento dos espíritos.
Neste livro, Pierre Weil cita o Ato Constitutivo da Unesco: "...as guerras nascem na mente dos homens e é nela, primeiramente, que devem ser erguidas as defesas da Paz.".
O autor pede uma visão holística da Paz, ou seja, um ponto de vista não fragmentário que abranja o aspecto pessoal ( felicidade interior do ser humano), a harmonia social (dentro das comunidades e entre elas, assim como entre as nações) e a relação equilibrada com o meio ambiente ( o planeta e o universo ).
Dentro do ser humano, segundo Pierre Weil, existem estímulos naturais para o cultivo da Paz:
. a alegria;
. o amor altruísta;
. a compaixão.
Na História da Humanidade, por isto, encontramos seres iluminados que abriram portais lutando, trabalhando e mesmo oferecendo suas vidas para o cultivo da Paz.
Infelizmente, ressalta o autor, existem as emoções destrutivas.É preciso saber transformá-las através de métodos de apoio, como os psicoterápicos; ou por métodos milenares de não-violência ou resistência pacífica que são baseados em um profundo respeito a toda manifestação de vida; o método chamado "consciência imediata", pelo qual, ao tomarmos consciência de sentimentos destrutivos, quando eles ainda estão germinando em nosso coração, torna-se mais fácil transformá-los em energia construtiva.
Quem é o autor?
Pierre Weil nasceu em 1924 em Estrasburgo,Alsácia, junto à fronteira França/Alemanha. Viveu também em Paris e, depois de conhecer nosso pais, adotou o Brasil como sua terra e seu lar, aqui permanecendo, trabalhando como psicólogo e professor, publicando dezenas de livros aqui e em muitos outros países. Recebeu o prêmio Unesco de Educação para a Paz, em Paris e criou o Colégio Internacional dos Terapeutas. Sua obra maior é a Unipaz criada no Brasil, mas que se expandiu para outras nações e que se dedica ao desenvolvimento da Cultura transdisciplinar e holística da Paz. Sua morte ocorreu no ano de 2008.
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Caldas lê. E você?
NOITE DE ALMIRANTE
Machado
de Assis
Deolindo
Venta-Grande (era uma alcunha de bordo) saiu do arsenal de marinha e enfiou
pela rua de Bragança. Batiam três horas da tarde. Era a fina flor dos marujos
e, de mais, levava um grande ar de felicidade nos olhos. A corveta dele voltou
de uma longa viagem de instrução, e Deolindo veio à terra tão depressa alcançou
licença. Os companheiros disseram-lhe, rindo:
- Ah! Venta-Grande! Que noite de almirante vai você passar! ceia, viola
e os braços de Genoveva. Colozinho de Genoveva...
Deolindo
sorriu. Era assim mesmo, uma noite de almirante, como eles dizem, uma dessas
grandes noites de almirante que o esperava em terra. Começara a paixão três
meses antes de sair a corveta. Chamava-se Genoveva, caboclinha de vinte anos,
esperta, olho negro e atrevido. Encontraram-se em casa de terceiro e ficaram
morrendo um pelo outro, a tal ponto que estiveram prestes a dar uma cabeçada,
ele deixaria o serviço e ela o acompanharia para a vila mais recôndita do
interior.
A
velha Inácia, que morava com ela, dissuadiu-os disso; Deolindo não teve remédio
senão seguir em viagem de instrução. Eram oito ou dez meses de ausência. Como
fiança recíproca, entenderam dever fazer um juramento de fidelidade.
-
Juro por Deus que está no céu. E você?
-
Eu também.
-
Diz direito.
-
Juro por Deus que está no céu; a luz me falte na hora da morte.
Estava
celebrado o contrato. Não havia descrer da sinceridade de ambos; ela chorava
doidamente, ele mordia o beiço para dissimular. Afinal separaram-se, Genoveva
foi ver sair a corveta e voltou para casa com um tal aperto no coração que
parecia que "lhe ia dar uma coisa". Não lhe deu nada, felizmente; os
dias foram passando, as semanas, os meses, dez meses, ao cabo dos quais, a
corveta tornou e Deolindo com ela.
Lá
vai ele agora, pela rua de Bragança, Prainha e Saúde, até ao princípio da
Gamboa, onde mora Genoveva. A casa é uma rotulazinha escura, portal rachado do
sol, passando o cemitério dos Ingleses; lá deve estar Genoveva, debruçada à
janela, esperando por ele. Deolindo prepara uma palavra que lhe diga. Já
formulou esta: "Jurei e cumpri", mas procura outra melhor. Ao mesmo
tempo lembra as mulheres que viu por esse mundo de Cristo, italianas,
marselhesas ou turcas, muitas delas bonitas, ou que lhe pareciam tais. Concorda
que nem todas seriam para os beiços dele, mas algumas eram, e nem por isso fez
caso de nenhuma. Só pensava em Genoveva. A mesma casinha dela, tão pequenina, e
a mobília de pé quebrado, tudo velho e pouco, isso mesmo lhe lembrava diante
dos palácios de outras terras. Foi à custa de muita economia que comprou em
Trieste um par de brincos, que leva agora no bolso com algumas bugigangas. E
ela que lhe guardaria? Pode ser que um lenço marcado com o nome dele e uma
âncora na ponta, porque ela sabia marcar muito bem. Nisto chegou à Gamboa,
passou o cemitério e deu com a casa fechada. Bateu, falou-lhe uma voz
conhecida, a da velha Inácia, que veio abrir-lhe a porta com grandes
exclamações de prazer. Deolindo, impaciente, perguntou por Genoveva.
-
Não me fale nessa maluca, arremeteu a velha. Estou bem satisfeita com o
conselho que lhe dei. Olhe lá se fugisse. Estava agora como o lindo amor.
-
Mas que foi? que foi?
A
velha disse-lhe que descansasse, que não era nada, uma dessas coisas que
aparecem na vida; não valia a pena zangar-se. Genoveva andava com a cabeça
virada...
-
Mas virada por quê?
-
Está com um mascate, José Diogo. Conheceu José Diogo, mascate de fazendas? Está
com ele. Não imagina a paixão que eles têm um pelo outro. Ela então anda
maluca. Foi o motivo da nossa briga. José Diogo não me saía da porta; eram
conversas e mais conversas, até que eu um dia disse que não queria a minha casa
difamada. Ah! meu pai do céu! foi um dia de juízo. Genoveva investiu para mim
com uns olhos deste tamanho, dizendo que nunca difamou ninguém e não precisava
de esmolas. Que esmolas, Genoveva? O que digo é que não quero esses cochichos à
porta, desde as aves-marias... Dois dias depois estava mudada e brigada comigo.
-
Onde mora ela?
-
Na praia Formosa, antes de chegar à pedreira, uma rótula pintada de novo.
Deolindo
não quis ouvir mais nada. A velha Inácia, um tanto arrependida, ainda lhe deu
avisos de prudência, mas ele não os escutou e foi andando. Deixo de notar o que
pensou em todo o caminho; não pensou nada. As idéias marinhavam-lhe no cérebro,
como em hora de temporal, no meio de uma confusão de ventos e apitos. Entre
elas rutilou a faca de bordo, ensangüentada e vingadora. Tinha passado a
Gamboa, o Saco do Alferes, entrara na praia Formosa. Não sabia o número de
casa, mas era perto da pedreira, pintada de novo, e com auxílio da vizinhança
poderia achá-la. Não contou com o acaso que pegou de Genoveva e fê-la sentar à
janela, cosendo, no momento em que Deolindo ia passando. Ele conheceu-a e
parou; ela, vendo o vulto de um homem, levantou os olhos e deu com o marujo.
-
Que é isso? exclamou espantada. Quando chegou? Entre, seu Deolindo.
E,
levantando-se, abriu a rótula e fê-lo entrar. Qualquer outro homem ficaria
alvoroçado de esperanças, tão francas eram as maneiras da rapariga; podia ser que
a velha se enganasse ou mentisse; podia ser mesmo que a cantiga do mascate
estivesse acabada. Tudo isso lhe passou pela cabeça, sem a forma precisa do
raciocínio ou da reflexão, mas em tumulto e rápido. Genoveva deixou a porta
aberta, fê-lo sentar-se, pediu-lhe notícias da viagem e achou-o mais gordo;
nenhuma comoção nem intimidade. Deolindo perdeu a última esperança. Em falta de
faca, bastavam-lhe as mãos para estrangular Genoveva, que era um pedacinho de
gente, e durante os primeiros minutos não pensou em outra coisa.
-
Sei tudo, disse ele.
-
Quem lhe contou?
Deolindo
levantou os ombros.
-
Fosse quem fosse, tornou ela, disseram-lhe que eu gostava muito de um moço?
-
Disseram.
-
Disseram a verdade.
Deolindo
chegou a ter um ímpeto; ela fê-lo parar só com a ação dos olhos. Em seguida
disse que, se lhe abrira a porta, é porque contava que era homem de juízo.
Contou-lhe então tudo, as saudades que curtira, as propostas do mascate, as
suas recusas, até que um dia, sem saber como, amanhecera gostando dele.
-
Pode crer que pensei muito e muito em você. Sinhá Inácia que lhe diga se não
chorei muito... Mas o coração mudou... Mudou... Conto-lhe tudo isto, como se
estivesse diante do padre, concluiu sorrindo.
Não
sorria de escárnio. A expressão das palavras é que era uma mescla de candura e
cinismo, de insolência e simplicidade, que desisto de definir melhor. Creio até
que insolência e cinismo são mal aplicados. Genoveva não se defendia de um erro
ou de um perjúrio; não se defendia de nada; faltava-lhe o padrão moral das
ações. O que dizia, em resumo, é que era melhor não ter mudado, dava-se bem com
a afeição do Deolindo, a prova é que quis fugir com ele; mas, uma vez que o
mascate venceu o marujo, a razão era do mascate, e cumpria declará-lo. Que vos
parece? O pobre marujo citava o juramento de despedida, como uma obrigação
eterna, diante da qual consentira em não fugir e embarcar: "Juro por Deus
que está no céu; a luz me falte na hora da morte". Se embarcou, foi porque
ela lhe jurou isso. Com essas palavras é que andou, viajou, esperou e tornou;
foram elas que lhe deram a força de viver. Juro por Deus que está no céu; a luz
me falte na hora da morte...
-
Pois, sim, Deolindo, era verdade. Quando jurei, era verdade. Tanto era verdade
que eu queria fugir com você para o sertão. Só Deus sabe se era verdade! Mas
vieram outras coisas... Veio este moço e eu comecei a gostar dele...
-
Mas a gente jura é para isso mesmo; é para não gostar de mais ninguém...
-
Deixa disso, Deolindo. Então você só se lembrou de mim? Deixa de partes...
-
A que horas volta José Diogo?
-
Não volta hoje.
-
Não?
-
Não volta; está lá para os lados de Guaratiba com a caixa; deve voltar
sexta-feira ou sábado... E por que é que você quer saber? Que mal lhe fez ele?
Pode
ser que qualquer outra mulher tivesse igual palavra; poucas lhe dariam uma
expressão tão cândida, não de propósito, mas involuntariamente. Vede que
estamos aqui muito próximos da natureza. Que mal lhe fez ele? Que mal lhe fez
esta pedra que caiu de cima? Qualquer mestre de física lhe explicaria a queda
das pedras. Deolindo declarou, com um gesto de desespero, que queria matá-lo.
Genoveva olhou para ele com desprezo, sorriu de leve e deu um muxoxo; e, como
ele lhe falasse de ingratidão e perjúrio, não pôde disfarçar o pasmo. Que
perjúrio? que ingratidão? Já lhe tinha dito e repetia que quando jurou era
verdade. Nossa Senhora, que ali estava, em cima da cômoda, sabia se era verdade
ou não. Era assim que lhe pagava o que padeceu? E ele que tanto enchia a boca
de fidelidade, tinha-se lembrado dela por onde andou?
A
resposta dele foi meter a mão no bolso e tirar o pacote que lhe trazia. Ela
abriu-o, aventou as bugigangas, uma por uma, e por fim deu com os brincos. Não
eram nem poderiam ser ricos; eram mesmo de mau gosto, mas faziam uma vista de
todos os diabos. Genoveva pegou deles, contente, deslumbrada, mirou-os por um
lado e outro, perto e longe dos olhos, e afinal enfiou-os nas orelhas; depois
foi ao espelho de pataca, suspenso na parede, entre a janela e a rótula, para
ver o efeito que lhe faziam. Recuou, aproximou-se, voltou a cabeça da direita
para a esquerda e da esquerda para a direita.
-
Sim, senhor, muito bonitos, disse ela, fazendo uma grande mesura de
agradecimento. Onde é que comprou?
Creio
que ele não respondeu nada, não teria tempo para isso, porque ela disparou mais
duas ou três perguntas, uma atrás da outra, tão confusa estava de receber um
mimo a troco de um esquecimento. Confusão de cinco ou quatro minutos; pode ser
que dois. Não tardou que tirasse os brincos, e os contemplasse e pusesse na
caixinha em cima da mesa redonda que estava no meio da sala. Ele pela sua parte
começou a crer que, assim como a perdeu, estando ausente, assim o outro,
ausente, podia também perdê-la; e, provavelmente, ela não lhe jurara nada.
-
Brincando, brincando, é noite, disse Genoveva.
Com
efeito, a noite ia caindo rapidamente. Já não podiam ver o hospital dos Lázaros
e mal distinguiam a ilha dos Melões; as mesmas lanchas e canoas, postas em
seco, defronte da casa, confundiam-se com a terra e o lodo da praia. Genoveva
acendeu uma vela. Depois foi sentar-se na soleira da porta e pediu-lhe que
contasse alguma coisa das terras por onde andara. Deolindo recusou a princípio;
disse que se ia embora, levantou-se e deu alguns passos na sala. Mas o demônio
da esperança mordia e babujava o coração do pobre diabo, e ele voltou a
sentar-se, para dizer duas ou três anedotas de bordo. Genoveva escutava com
atenção. Interrompidos por uma mulher da vizinhança, que ali veio, Genoveva
fê-la sentar-se também para ouvir "as bonitas histórias que o Sr. Deolindo
estava contando". Não houve outra apresentação. A grande dama que prolonga
a vigília para concluir a leitura de um livro ou de um capítulo, não vive mais
intimamente a vida dos personagens do que a antiga amante do marujo vivia as
cenas que ele ia contando, tão livremente interessada e presa, como se entre
ambos não houvesse mais que uma narração de episódios. Que importa à grande
dama o autor do livro? Que importava a esta rapariga o contador dos episódios?
A
esperança, entretanto, começava a desampará-lo e ele levantou-se
definitivamente para sair. Genoveva não quis deixá-lo sair antes que a amiga
visse os brincos, e foi mostrar-lhos com grandes encarecimentos. A outra ficou
encantada, elogiou-os muito, perguntou se os comprara em França e pediu a
Genoveva que os pusesse.
-
Realmente, são muito bonitos.
Quero
crer que o próprio marujo concordou com essa opinião. Gostou de os ver, achou
que pareciam feitos para ela e, durante alguns segundos, saboreou o prazer
exclusivo e superfino de haver dado um bom presente; mas foram só alguns
segundos.
Como
ele se despedisse, Genoveva acompanhou-o até à porta para lhe agradecer ainda
uma vez o mimo, e provavelmente dizer-lhe algumas coisas meigas e inúteis. A
amiga, que deixara ficar na sala, apenas lhe ouviu esta palavra: "Deixa
disso, Deolindo"; e esta outra do marinheiro: "Você verá." Não
pôde ouvir o resto, que não passou de um sussurro.
Deolindo
seguiu, praia fora, cabisbaixo e lento, não já o rapaz impetuoso da tarde, mas
com um ar velho e triste, ou, para usar outra metáfora de marujo, como um homem
"que vai do meio caminho para terra". Genoveva entrou logo depois,
alegre e barulhenta. Contou à outra a anedota dos seus amores marítimos, gabou
muito o gênio do Deolindo e os seus bonitos modos; a amiga declarou achá-lo
grandemente simpático.
-
Muito bom rapaz, insistiu Genoveva. Sabe o que ele me disse agora?
-
Que foi?
-
Que vai matar-se.
-
Jesus!
-
Qual o quê! Não se mata, não. Deolindo é assim mesmo; diz as coisas, mas não
faz. Você verá que não se mata. Coitado, são ciúmes. Mas os brincos são muito
engraçados.
-
Eu aqui ainda não vi destes.
-
Nem eu, concordou Genoveva, examinando-os à luz. Depois guardou-os e convidou a
outra a coser. - Vamos coser um bocadinho, quero acabar o meu corpinho azul...
A
verdade é que o marinheiro não se matou. No dia seguinte, alguns dos
companheiros bateram-lhe no ombro, cumprimentando-o pela noite de almirante, e
pediram-lhe notícias de Genoveva, se estava mais bonita, se chorara muito na
ausência, etc. Ele respondia a tudo com um sorriso satisfeito e discreto, um
sorriso de pessoa que viveu uma grande noite. Parece que teve vergonha da
realidade e preferiu mentir.
Sobre o autor:
Joaquim Maria Machado de
Assis, nascido em 1839, é considerado o maior nome da literatura nacional. Foi
poeta, cronista, dramaturgo, contista, folhetinista, jornalista e crítico
literário. Sua obra constitui-se em nove romances e peças teatrais, 200 contos,
cinco coletâneas de poemas e sonetos e mais de 600 crônicas. Veio a falecer em
1908, aos 79 anos de idade.
Fonte: http://www.superdownloads.com.br/
Fonte: http://www.superdownloads.com.br/
Por Adele
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Mirabolando
Entrevista: Fernando Rocha Brant
ENTREVISTA COM FERNANDO ROCHA BRANT PUBLICADA NO JORNAL
SONHA CALDAS, NÚMERO 28, MARÇO DE 2009.
AQUI NÓS A REPRODUZIMOS POR SOLICITAÇÃO DE NOSSOS
AMIGOS CALDENSES.
Sonha Caldas: Você nasceu em Caldas, mas sua família mudou-se
quando você era criança. Algumas recordações da cidade ou algum comentário de
seus pais sobre sua terra natal ficaram em sua memória?
Fernando: Aí vai um trecho de uma crônica
que escrevi sobre minha volta a Caldas, cinquenta anos depois de ter me mudado,
aos cinco anos de idade, para Diamantina. Penso que, com este texto eu respondo
à sua pergunta:
“De que lugares eu me lembro para poder recordar, se minha
memória são apenas sombras, neblinas, pedaços esparsos de uma pequena vida?
Existem duas igrejas, uma de cada lado da rua ou praça principal. Eu estou
correndo de um velho maluco que quer me pegar, sou esperto e chego primeiro ao
portão de casa da família. Eu me fechei dentro de um armário e, quando me
acham, eu vomito inteiro o queijo que devorara. Há um cheiro de milho assado vindo do fundo do fórum onde
meu pai trabalhava. Meu irmão mais velho chega apavorado contando coisas que
não entendo. Chora e vomita e eu vomito atrás. Homens e mulheres cantam em
serenata para meus pais na madrugada fria e só muito tempo depois é que eu vou
saber que o canto é de despedida. Meu pai me castiga e, por desaforo, eu compro
uma barra de chocolate e coloco em sua conta no armazém.
Eu fui aquele criança feliz que nasceu ali naquela pequena
cidade mineira chamada Caldas, chamada Parreiras e novamente Caldas.
Sonha Caldas: É verdade que, coincidentemente, quando você e
Milton Nascimento fizeram juntos a maravilhosa “Travessia” comemoraram tomando
vinho de Caldas?
Fernando: É verdade. Meu pai, Juiz de Direito,
deixou muitos amigos e boas lembranças de Caldas. Desde que foi transferido
para Diamantina, ele recebia, periodicamente, uma boa remessa de vinhos que ele consumia, com extrema moderação, na
hora das refeições. Quando eu e o Milton nos encontramos, em minha casa em Belo
Horizonte, para cantar nossa primeira parceria, uma dessas garrafas de meu pai
foi devidamente bebida. Caldas estava lá, presente nessa momento tão importante
para nós.
Sonha Caldas: Quando você voltou a Caldas? Quais suas impressões
neste retorno?
Fernando: Reproduzo outra crônica, em que
conto minhas impressões ao retornar à minha terra natal: “Saí da pequena cidade
um pouco antes de completar cinco anos de idade.
Eu me lembrava, porém, de alguns fatos, casas e ruas que
teimavam em ficar na minha memória. Seria verdade ou sonho, eu me perguntava
passados cinquenta anos? A única maneira de esclarecer a questão era tomar o
caminho de volta e rever a terra em que nasci e fui menino. Caldas deixaria de
ser uma sombra em meus pensamentos para ser realidade. E existem as fotos minhas
e de meus irmãos, uma escadinha que devia dar um trabalho dos diabos,
principalmente quando todos pegavam, ao mesmo tempo, aquelas doenças próprias
da infância. Eu sou aquele loirinho de cabelos cacheados, curativo no pé, que
olha para o futuro sem saber o que é o futuro.
A ansiedade de entrar adulto no meu território da infância
fez com que eu viajasse monossilábico os vinte quilômetros que separam minha
pequena aldeia de bela Poços de Caldas. De repente, ao longe, contemplo o
pequeno presépio que se anuncia ao pé da serra. Sempre um paredão de pedra a
observar meus passos. Em Diamantina, o Espinhaço emoldurando os dias e noites
de música, poesia, lua e cachaça. Em Belo Horizonte, a Serra do Curral
guardando os sonhos dos homens e mulheres vindos de todas as terras de Minas.
Minha cidade berço tem a vigiá-la a serra de Caldas. No meio do meu caminho
sempre haverá uma pedra; plantarei a minha casa numa cidade de pedra.
Piso enfim o chão que me viu nascer, ando pelas ruas calçadas
e limpas. De um lado a capela de Nossa Senhora do Patrocínio, padroeira do
lugar. De outro, a igreja de Nossa Senhora do Rosário. No meio delas, uma
singela casa onde respirei os primeiros ares, dei os primeiros passos, me pus à
disposição da vida. Ela, minha primeira residência, continua do jeitinho que
era, apenas tem vidros que fecham a varanda da entrada. E a grande escadaria da
frente não passa de uma sucessão de meros três degraus. As casas conservam a
arquitetura de antes. A rua principal, as árvores, o coreto, os jardins: nada
parece ter mudado nas últimas décadas.
De súbito, uma festa toma conta da praça principal. Todos
saem para a rua e um barulho de antigamente enche meus ouvidos de uma música
inesquecível. Tenho a sorte bendita de voltar à minha terra no dia e hora de um
grande desfile de carros de bois.
Carregados de lenha e de meninos, os carros enfeitados de
alegria e rangendo sempre, são guiados por parelhas de bois que vendem saúde e
beleza. Vão e voltam pela rua principal em procissão lenta e sonora. Nas
calçadas, os caldenses aplaudem, comentam, festejam.
O espetáculo aguça a minha memória e eu me lembro do dia
longínquo em que um carro de boi igual a esses levou lenha para minha casa.
Finda a tarefa, o dono do carro de boi tocou os animais em frente. Eu, curioso
como todo menino, segui junto ao lado dos bois. A paciência bovina também tem
limites e eu me vi lançado por uma pata até o outro lado da rua. Não me
machuquei pois a pequena distância que me separava do boi não permitiu que ele
me aplicasse um coice de fato. Foi meu
primeiro voo. Os carros de bois e a cidade preservada me acenderam a felicidade
da infância e eu, por momentos, tive um arrepio: a sensação de que, se estou aqui
contando essa história, se estou aqui vivo, foi porque escapei por pouco. Como
costuma acontecer com todos os meninos do mundo.
Sonha Caldas: Você e Milton Nascimento fizeram canções lindíssimas. Algumas delas
tocam com mais profundidade o seu coração ou todas são igualmente especiais?
Fernando: Todas são igualmente especiais,
pois sempre criamos canções que exprimem nosso sentimento do mundo, nossa
crenças, nossos amores, nossas amizades, nossa brasilidade, mineiridade, nosso
jeito de ser e estar no mundo. Cada uma delas é um pedaço de nós.
Sonha Caldas: Você faz parceria com outros músicos também.
Poderia citar-nos alguns deles e contar-nos quantas letras para músicas você já
fez?
Fernando: A lista é grande. Tavinho Moura, Lô
Borges, Wagner Tiso, Beto Guedes, Nélson Ângelo, Toninho Horta, Sirlan,
Robertinho Brant, Tunai, Flávio Henrique, Ladston do Nascimento, Yuri Popoff e
muitos outros, além de gente nova, boa de serviço, que vem surgindo por aí.
Estou coletando meus guardados para saber quantas canções eu
fiz. São mais de trezentas, certamente.
Sonha Caldas: Suas letras musicais
são verdadeiras poesias. Você se vê como poeta ou como músico?
Fernando: Não sou músico, mas tenho um bom
ouvido musical. Tanto que a maioria das
minhas letras são feitas depois da melodia e da harmonia. Penso que a palavra
inglesa para definir esse tipo de profissão é exata: escritor de canções.
Sonha Caldas: “Chico, o Caminhador”... fale-nos deste seu
livro.
Fernando: Foi uma idéia de minha amiga, a ilustradora Ana Raquel. Ele visitou as
margens pobres do Rio São Francisco, tirou fotos e em cima delas criou
belíssimas imagens. Eu já tinha escrito, com o Tavinho Moura, a canção “ Chico,
o Caminhador”. O livro, de minha parte, foi uma continuação da letra, que é seu
ponto de partida. Eu fui letrando as imagens da mesma forma que faço com as
músicas.
Sonha Caldas: Você gosta de cantar suas canções?
Fernando: Gosto. Antigamente, por ser
parceiro de um dos maiores cantores do mundo, eu tinha um pouco de vergonha.
Depois descobri que cantar é um direito humano, desde que você não desafine nem ataque os ouvidos
alheios.
Tenho feito shows, com
o Tavinho Moura, há muitos anos. Voz, violão e os autores.
Daí saiu o nosso CD chamado “ Conspiração dos Poetas. Vamos
cantando por aí.
Sonha Caldas: Quais são suas prioridades culturais
no momento ?
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Acontece
Microscópio
Humberto de Campos
Os salões do desembargador Marcelino Pedreira, à
rua São Clemente, achavam-se repletos, como poucas vezes acontecia, naquela
noite memorável. Políticos, magistrados, médicos, bacharéis, homens de letras e
homens de negócios enchiam os grandes compartimentos do palacete magnífico, de
mistura com o que há de mais fino, de mais chic, de mais distinto, nas rodas
femininas do Rio. Lauro Müller, Miguel Couto, Pires do Rio, Antônio Azeredo,
são silhuetas em evidência. O encanto da reunião está, entretanto, na revoada
de moças e senhoras que volteiam pelas salas, e entre as quais se destaca, pela
formosura, pela mocidade, pela inocência do olhar e dos modos, Mlle. Júlia
Petersen, noiva do Dr. Abelardo Moura e filha única do desembargador Feliciano
Mendonça.
De repente, como se um punhado de folhas e flores
obedecesse a um redemoinho invisível, faz-se uma roda em torno a uma das mesas
da sala de chá. Homens de ciência e damas inteligentes formam o grupo. Elevada,
culta, a palestra versa os assuntos mais variados, encantando as senhoras.
Na sala contígua, dança-se. E, entre os pares, o
Dr. Abelardo e a noiva. Súbito, parando, põem-se os dois a conversar:
— Que mãos tens tu, Julita! — elogia o noivo,
maravilhado, apertando os dedos miúdos, finos, quase infantis, da sua
prometida.
— Acha-a pequena? — indaga a moça.
— Microscópica!
— Como?
— Microscópica! — insiste o rapaz.
Intrigada com o vocábulo, que ouvia pela primeira
vez, a moça pede licença por um instante, penetra no salão de chá e, com a sua
ingenuidade, indaga do Dr. Álvaro Osório:
— Doutor, que significa “microscópico?”
— É um derivado de “microscópio”, Mademoiselle! —
explica o ilustre fisiologista.
— E que é “microscópio”? — torna a menina,
franzindo a testa morena, que os olhos iluminam.
O Dr. Álvaro medita um momento, e, para não perder
tempo, explica:
— É um aparelho que faz as coisas crescerem.
Compreende?
A menina sorri, agradecida. De repente, porém,
pisca os olhos, franze mais a testa, e enrubescendo:
— Ahn!...
Morde o dedinho róseo, meio brejeira, meio
encabulada:
— Sem vergonha! Agora é que eu compreendo porque é
que ele diz que eu tenho a mão microscópica ...
E sai correndo, vermelha, a abraçar-se com o noivo.
Texto extraído do livro "Gansos do Capitólio", W. M. Jackson Inc. Editores, 1951, pág. 80.
Sobre o autor:
Humberto
de Campos Veras, jornalista,
político, crítico, cronista, contista, poeta, biógrafo e memorialista, nasceu
em Miritiba, hoje Humberto de Campos, MA, em 25 de outubro de 1886, e faleceu
no Rio de Janeiro, RJ, em 5 de dezembro de 1934. Foram seus pais Joaquim Gomes
de Faria Veras, pequeno comerciante, e Ana de Campos Veras. Perdendo o pai aos
seis anos, Humberto de Campos deixou a cidade natal e foi levado para São Luís.
Dali, aos 17 anos, passou a residir no Pará, onde conseguiu um lugar de
colaborador e redator na "Folha do Norte" e, pouco depois, na
Província do Pará. Em 1910 publicou seu primeiro livro, a coletânea de versos
intitulada “Poeira”, primeira série. Em 1912 transferiu-se para o Rio. Entrou
para o jornal “O Imparcial”, na fase em que ali trabalhava um grupo de
escritores ilustres, como redatores ou colaboradores, entre os quais Goulart de
Andrade, Rui Barbosa, José Veríssimo, Júlia Lopes de Almeida, Salvador de
Mendonça e Vicente de Carvalho. João Ribeiro era o crítico literário. Ali
também José Eduardo de Macedo Soares renovava a agitação da segunda campanha
civilista. Humberto de Campos ingressou no movimento. Logo
depois o jornalista militante deu lugar ao intelectual. Fez essa transição com
o pseudônimo de Conselheiro XX com que assinava contos e crônicas, hoje
reunidos em vários volumes. Assinava também com os pseudônimos Almirante
Justino Ribas, Luís Phoca, João Caetano, Giovani Morelli, Batu-Allah,
Micromegas e Hélios.
Eleito em 30 de outubro de 1919 para a Cadeira nº. 20, sucedendo a Emílio de
Menezes, foi recebido em 8 de maio de 1920, pelo acadêmico Luís Murat.
Em 1920, já acadêmico, foi eleito deputado federal pelo Maranhão. Em 1923,
substituiu Múcio Leão na coluna de crítica do jornal “Correio da Manhã”. A
revolução de 1930 dissolveu o Congresso e ele perdeu seu mandato. O presidente
Getúlio Vargas, que era grande admirador do talento de Humberto de
Campos, procurou minorar as dificuldades do autor de “Poeira”, dando-lhe
os lugares de inspetor de ensino e de diretor da Casa de Rui Barbosa. Em 1931,
viajou ao Prata em missão cultural. Em 1933 publicou o livro que se tornou o
mais célebre de sua obra, “Memórias”, crônica dos começos de sua vida. O seu
“Diário secreto”, de publicação póstuma, provocou grande escândalo pela
irreverência e malícia em relação a contemporâneos.
Autodidata, grande ledor, acumulou vasta erudição, que usava nas crônicas.
Poeta neoparnasiano, fez parte do grupo da fase de transição anterior a 1922.
"Poeira" é um dos últimos livros da escola parnasiana no Brasil. Fez
também crítica literária de natureza impressionista. É uma crítica de
afirmações pessoais, que não se fundamentam em critérios e, por isso, não podem
ser endossadas nem verificadas. Na crônica, seu recurso mais corrente era tomar
conhecidas narrativas e dar-lhes uma forma nova, fazendo comentários e
digressões sobre o assunto, citando anedotas e tecendo comparações com outras
obras. No fundo ou na essência, era uma crítica superficial, que não resiste à
análise nem ao tempo.
Obras: Poeira, poesia, 2 séries (1910 e 1917); Da seara de Booz, crônicas
(1918); Vale de Josaphat, contos (1918); Tonel de Diógenes, contos (1920); A
serpente de bronze, contos (1921); Mealheiro de Agripa, vária (1921); Carvalhos
e roseiras, crítica (1923); A bacia de Pilatos, contos (1924); Pombos de Maomé,
contos (1925); Antologia dos humoristas galantes (1926); Grãos de mostarda,
contos (1926); Alcova e salão, contos (1927); O Brasil anedótico, anedotas
(1927); Antologia da Academia Brasileira de Letras (1928); O monstro e outros
contos (1932); Memórias 1886-1900 (1933); Crítica, 4 séries (1933, 1935, 1936);
Os países, vária (1933); Poesias completas (1933); À sombra das tamareiras,
contos (1934); Sombras que sofrem, crônicas (1934); Um sonho de pobre, memórias
(1935); Destinos, vária (1935); Lagartas e libélulas, vária (1935); Memórias
inacabadas (1935); Notas de um diarista, 2 séries (1935 e 1936);
Reminiscências, memórias (1935); Sepultando os meus mortos, memórias (1935);
Últimas crônicas (1936); Perfis, 2 séries, biografias (1936); Contrastes, vária
(1936); O arco de Esopo, contos (1943); A funda de Davi, contos (1943); Gansos
do Capitólio, contos (1943); Fatos e feitos, vária (1949); Diário secreto, 2
vols. (1954). (Dados obtidos no sítio da Academia Brasileira de Letras).
Autodidata, grande ledor, acumulou vasta erudição, que usava nas crônicas.
Poeta neoparnasiano, fez parte do grupo da fase de transição anterior a 1922.
"Poeira" é um dos últimos livros da escola parnasiana no Brasil. Fez
também crítica literária de natureza impressionista. É uma crítica de
afirmações pessoais, que não se fundamentam em critérios e, por isso, não podem
ser endossadas nem verificadas. Na crônica, seu recurso mais corrente era tomar
conhecidas narrativas e dar-lhes uma forma nova, fazendo comentários e
digressões sobre o assunto, citando anedotas e tecendo comparações com outras
obras. No fundo ou na essência, era uma crítica superficial, que não resiste à
análise nem ao tempo.
Obras: Poeira, poesia, 2 séries (1910 e 1917); Da seara de Booz, crônicas
(1918); Vale de Josaphat, contos (1918); Tonel de Diógenes, contos (1920); A
serpente de bronze, contos (1921); Mealheiro de Agripa, vária (1921); Carvalhos
e roseiras, crítica (1923); A bacia de Pilatos, contos (1924); Pombos de Maomé,
contos (1925); Antologia dos humoristas galantes (1926); Grãos de mostarda,
contos (1926); Alcova e salão, contos (1927); O Brasil anedótico, anedotas
(1927); Antologia da Academia Brasileira de Letras (1928); O monstro e outros
contos (1932); Memórias 1886-1900 (1933); Crítica, 4 séries (1933, 1935, 1936);
Os países, vária (1933); Poesias completas (1933); À sombra das tamareiras,
contos (1934); Sombras que sofrem, crônicas (1934); Um sonho de pobre, memórias
(1935); Destinos, vária (1935); Lagartas e libélulas, vária (1935); Memórias
inacabadas (1935); Notas de um diarista, 2 séries (1935 e 1936);
Reminiscências, memórias (1935); Sepultando os meus mortos, memórias (1935);
Últimas crônicas (1936); Perfis, 2 séries, biografias (1936); Contrastes, vária
(1936); O arco de Esopo, contos (1943); A funda de Davi, contos (1943); Gansos
do Capitólio, contos (1943); Fatos e feitos, vária (1949); Diário secreto, 2
vols. (1954). (Dados obtidos no sítio da Academia Brasileira de Letras).
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