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A Mulher Vestida



Fernando Sabino
Eu estava num centro comercial de Copacabana e era sábado, pouco depois do meio-dia. Às tantas, comecei a ouvir uma martelação de ensurdecer. O dono de uma lojinha de sapatos para senhoras chegou-se à porta, assustado:
- Que será isso?
E saiu pelo corredor a investigar. Caminhávamos na mesma direção e logo descobrimos que o ruído vinha de uma sala fechada, um curso de ginástica. Batiam desesperadamente na porta, lá dentro – com um haltere, no mínimo.
- Que está acontecendo? – o sapateiro gritou do lado de cá.
Uma voz chorosa de mulher explicou que a porta estava trancada, que ela não podia sair.
- Quede a chave? – berrou o homem.
- O professor levou – respondeu a voz.
- Que professor?
- O professor de ginástica.
- Espere que eu vou buscar o zelador- arrematou o homem, solícito.
E se voltou para mim :
- O senhor podia fazer o favor de procurar o zelador para soltar a mulher? Não posso abandonar a minha loja sem ninguém.
Não tive outro jeito senão sair à procura do zelador.
Era delicado e solícito, mas infelizmente não podia fazer nada: não tinha a chave da sala.
Voltei ao corredor, vencendo a tentação de cair fora de uma vez, deixar que a mulher se arranjasse. A bateção recomeçara, ela parecia disposta a botar a porta abaixo:
- Abre essa porta! Pelo amor de Deus!
- Calma, minha senhora – berrei do lado de cá: – Vamos ver se a gente dá um jeito.
No corredor ia-se juntando gente, e várias sugestões eram aventadas: abrir um buraco na parede, chamar o Corpo de Bombeiros, retirá-la pela janela.
- Deve ser uma mulher forte.
- Eu se fosse ela aproveitava e quebrava tudo lá dentro.
Pensei em transferir a alguém mais a tarefa que o sapateiro me confiara, não encontrei ninguém que parecesse disposto a aceitar a responsabilidade: todos se limitavam a fazer comentários jocosos, estavam é se divertindo com o incidente. De súbito me ocorreu perguntar à mulher o número de telefone do professor. Foi um custo fazê-la cantar de lá a resposta, algarismo por algarismo.
Saí para a rua à procura de um telefone – tive de andar um quarteirão inteiro até uma farmácia, onde fiquei aguardando na fila. Chegou afinal a minha vez. Atendeu-me uma voz de criança, certamente filha do professor. Que ainda não havia chegado em casa, pelo que pude entender:
- Escuta, meu benzinho, diga para o papai que tem uma mulher trancada na sala lá do curso dele, está me entendendo? Repete comigo : uma mulher trancada…
Não havendo mais nada a fazer, resolvi tomar o caminho de casa – mas a curiosidade me arrastou mais uma vez até ao centro comercial.
O interesse conquistara todo o andar, espalhava-se aos demais, ganhava a rua : gente se acotovelava diante do prédio, agora era uma multidão de verdade que acompanhava os acontecimentos :
- Por que não arrombam a porta de uma vez?
- O que a mulher está fazendo lá dentro?
- Dizem que ela está nua.
A palavra mágica correu logo entre a multidão : nua, uma mulher nua! E cada vez juntava mais gente, ameaçando interromper o tráfego :
- Mulher nua! Mulher nua! – gritavam os moleques.
Dois soldados da polícia militar, passaram correndo, cassetete em riste, sem saber para onde se dirigir. A multidão se abriu, precavidamente. Um homem de ar decidido pedia licença e ia entrando pelo centro comercial adentro, como quem vai resolver o problema. Devia ser algum comissário de polícia.
Era o professor, que comparecia com a chave. Em pouco a porta do curso de ginástica se abriu e a mulher saiu, ressabiada – completamente vestida. Era baixinha e meia gorda, estava mesmo precisando de ginástica.
 Fonte: SABINO, Fernando, Deixa o Alfredo Falar. RJ: Record, 1976.
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Sobre o autor:
Fernando Sabino
Advogado, jornalista e escritor brasileiro nascido em Belo Horizonte, Minas Gerais, uma das mais ecléticas personalidades brasileiras da segunda metade do século XX, cuja obra literária caracterizou-se pela capacidade de explorar, com fino senso de humor, o lado pitoresco e poético de fatos cotidianos e personagens obscuros. Filho do representante comercial Domingos Sabino e de Odete Tavares Sabino, na infância e juventude, destacou-se como escoteiro, locutor de programa infantil aos 12 anos e autor do primeiro conto ainda no secundário. Como atleta, aos 16 anos venceu vários campeonatos de nado de costas em Minas, São Paulo e Rio de Janeiro e, aos 17 anos, começou a escrever artigos literários para o jornal mineiro O Diário, onde também eram publicados Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino. Fez serviço militar na cavalaria do CPOR, estudou direito e aos 18 anos publicou seu primeiro livro de contos, Os grilos não cantam mais (1941). Passou para o funcionalismo público (1942) na secretaria de Finanças, além de dar aulas de português. Mudou-se para o Rio de Janeiro (1944), então capital federal, onde mantinha um emprego em um cartório e se firmou como colaborador de diversos jornais. Publicou A Marca (1944) pela José Olympio e passou a conviver com a nata intelectual do então distrito federal, incluindo Rubem Braga, Vinicius de Moraes, Di Cavalcanti e Manuel Bandeira.
Formou-se em direito (1946) e mudou-se para Nova York, nos Estados Unidos, para trabalhar no consulado brasileiro (1946-1948), experiência que resultou em A cidade vazia (1950), retrato da vida americana. Neste período iniciou uma longa cooperação com a imprensa brasileira, escrevendo para o 'Diário de Notícias, o Diário Carioca, O Jornal, Jornal do Brasil e O Globo. Seu primeiro e mais importante sucesso literário foi o romance Encontro marcado (1956), lançado em vários países e levado diversas vezes ao teatro. Depois veio o roteiro do filme O homem nu (1960), com direção de Roberto Santos e com Paulo José, e outro livro de sucesso, A mulher do vizinho (1962). Foi adido cultural da embaixada do Brasil em Londres (1964-1966) e fundou (1967), a Editora Sabiá, em sociedade com Rubem Braga, na qual publicou obras de autores como Vinicius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Pablo Neruda e Manuel Puig. No início da década seguinte (1971) passa a exercer seus dotes de diretor de cinema, realizando um curta sobre Rubem Braga e, no ano seguinte, em colaboração com Davi Neves, em Los Angeles, uma série de oito pequenos documentários sobre Hollywood para a TV Globo. Fundou a Bem-Te-Vi Filmes e produziu curtas-metragens sobre feiras internacionais em vários países. Participou da produção e direção de documentários sobre escritores brasileiros contemporâneos e voltou ao romance (1979) com O grande mentecapto, que lhe vale o prêmio Jabuti.
Depois vieram, entre outros, O menino no espelho (1982), O gato sou eu (1983), Macacos Me Mordam (1984), Faca de dois gumes (1985), Martini Seco (1987), De Cabeça para Baixo (1989), Zélia, uma paixão, a biografia autorizada da então toda poderosa do governo Fernando Collor, Zélia Cardoso de Mello (1991), O Bom Ladrão (1992), Aqui estamos todos nus (1993), Com a graça de Deus (1995), Um Corpo de Mulher (1997), Amor de Capitu (1998), A chave do enigma (1999), Cara ou Coroa? (2000), Os Caçadores de Mentira (2003) e Os Movimentos Simulados (2004). Depois de dois anos lutando contra um câncer no esôfago, foi internado em setembro na Casa de Saúde Pinheiro Machado, em Laranjeiras, e morreu no Rio de Janeiro e foi enterrado no cemitério São João Batista, em Botafogo, zona sul do Rio, no dia em que completaria 81anos de idade.

    


   Por Adele

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