Cecília Meireles
Começam a cair uns pingos de chuva. Tão leves e raros que nem as borboletas
ainda perceberam, e continuam a pousar, às tontas, de jasmim em jasmim. As
pedras estão muito quentes, e cada gota que cai logo se evapora. Os meninos
olham para o céu cinzento, estendem a mão — e vão tratar de outra coisa. (Como
desejariam pular em poças d'água! — Mas a chuva não vem...)
Nas terras secas, tanta gente, a esta hora, estará procurando também no céu um
sinal de chuva! E, nas terras inundadas, quanta gente a suspirar por um raio de
sol!
Penso em chuvas de outrora: chuvas matinais, que molham cabelos soltos, que despencam as flores das cercas, entram pelos cadernos escolares e vão apagar a caprichosa caligrafia dos exercícios.
Penso em chuvas de outrora: chuvas matinais, que molham cabelos soltos, que despencam as flores das cercas, entram pelos cadernos escolares e vão apagar a caprichosa caligrafia dos exercícios.
Chuvas de viagens: tempestades na Mantiqueira, quando nem os ponteiros dos
pára-brisas dão vencimento à água; quando apenas se avista, recortada na noite,
a paisagem súbita e fosfórea mostrada pelos relâmpagos. Catadupas despenhando sobre
Veneza, misturando o céu e os canais numa água única, e transformando o Palácio
dos Doges num imenso barco mágico, onde se movem, pelos tetos e paredes, os
deuses do paganismo e os santos cristãos. Chuva da Galileia, salpicando as ruas
pobres de Nazaré, regando os campos virentes, toldando o lago de Tiberíades
coberto ainda pelo eterno olhar dos Apóstolos. Chuva pontual sobre os belos
campos semeados da França, e na fluida paisagem belga, por onde imensos cavalos
sacodem, com displicente orgulho, a dourada crina...
Chuvas antigas, nesta cidade nossa, de perpétuas enchentes: a de 1811, que, com
o desabamento de uma parte do morro do Castelo, soterrou várias pessoas,
arrastou pontes, destruiu caminhos e causou tal pânico que durante sete dias as
igrejas e capelas estiveram abertas, acesas, com os sacerdotes e o povo a
implorarem a misericórdia divina. Uma, de 1864, que Vieira Fazenda descreve
minuciosamente, com árvores arrancadas, janelas partidas, telhados pelos ares,
desastres no mar e “vinte mil Lampiões da iluminação pública completamente
inutilizados”.
Chuvas modernas, sem trovoada, sem igrejas em prece, mas com as ruas igualmente
transformadas em rios, os barracos a escorregarem pelos morros, barreiras,
pedras, telheiros a soterrarem pobre gente. Chuvas que interrompem estradas,
estragam lavouras, deixam na miséria aqueles justamente que desejariam a boa
rega do céu para a fecundidade de seus campos.
Por enquanto, caem apenas algumas gotas daqui e dali. Nem as borboletas ainda
percebem. Os meninos esperam em vão pelas poças d' água onde pulariam contentes.
Tudo é apenas calor e céu cinzento, um céu de pedra onde os sábios e avisados
tantas coisas liam outrora:
"São Jerônimo, Santa Bárbara Virgem,
lá no céu está escrito, entre a cruz e a água benta:
Livrai-nos, Senhor, desta tormenta!”
Texto extraído do livro “Quadrante 2 - 4ª Edição (com Biografias)”, Editora
do Autor - Rio de Janeiro, 1963, pág. 48 e 49.
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Sobre a autora:
Cecília
Meireles (1901-1964) foi poetisa, professora, jornalista e pintora brasileira.
Foi a primeira voz feminina de grande expressão na literatura brasileira com
mais de 50 obras publicadas. Com 18 anos estreia na literatura com o livro
"Espectros". Participou do grupo literário da Revista Festa, grupo
católico, conservador e anti-modernista. Dessa vinculação herdou a tendência
espiritualista que percorre seus trabalhos com frequência.
A
maioria de suas obras expressa estados de ânimo, predominando os sentimentos de
perda amorosa e solidão. Uma das marcas do lirismo de Cecília Meireles é a
musicalidade de seus versos. Alguns poemas como "Canteiros" e
"Motivo" foram musicados pelo cantor Fagner. Em 1939 publicou
"Viagem" livro que lhe deu o prêmio de poesia da Academia Brasileira
de Letras.
Cecília Meireles (1901-1964) nasceu no Rio de Janeiro em 7 de
novembro de 1901. Órfã de pai e mãe, aos três anos de idade passa a ser criada
pela avó materna, Jacinta Garcia Benevides. Fez o curso primário na Escola Estácio
de Sá, onde recebeu das mãos de Olavo Bilac a medalha do ouro por ter feito o
curso com louvor e distinção. Formou-se professora pelo Instituto de Educação
em 1917. Passa a exercer o magistério em escolas oficiais do Rio de Janeiro.
Estreia na Literatura com o livro "Espectros" em 1919, com 17 sonetos
de temas históricos.
Em 1922 casa-se com o artista plástico português Fernando Correia
Dias, com quem teve três filhas. Viúva, casa-se pela segunda vez com o
engenheiro Heitor Vinícius da Silva Grilo, falecido em 1972. Estudou
literatura, música, folclore e teoria educacional. Colaborou na imprensa
carioca escrevendo sobre folclore. Atuou como jornalista em 1930 e 1931,
publicou vários artigos sobre os problemas na educação. Fundou em 1934 a
primeira biblioteca infantil no Rio de Janeiro.
Cecília Meireles lecionou Literatura e Cultura Brasileira na
Universidade do Texas, em 1940. Profere em Lisboa e Coimbra, conferência sobre
Literatura Brasileira. Publica em Lisboa o ensaio "Batuque, Samba e
Macumba", com ilustrações de sua autoria. Em 1942 torna-se sócia honorária
do Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro. Realiza várias viagens
aos Estados Unidos, Europa, Ásia e África, fazendo conferências sobre
Literatura Educação e Folclore.
Cecília
Benevides de Carvalho Meireles morre no Rio de Janeiro no dia 9 de novembro de
1964. Seu corpo é velado no Ministério da Educação e Cultura. Cecília Meireles
é homenageada pelo Banco Central, em 1989, com sua efígie na cédula de cem
cruzados novos.
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Por Adele
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