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Cem Anos de Perdão

 
                                                                                                         Clarice Lispector
Quem nunca roubou não vai me entender. E quem nunca roubou rosas, então é que jamais poderá me entender. Eu, em pequena, roubava rosas.
Havia em Recife inúmeras ruas, as ruas dos ricos, ladeadas por palacetes que ficavam no centro de grandes jardins. Eu e uma amiguinha brincávamos muito de decidir a quem pertenciam os palacetes. “Aquele branco é meu.” “Não, eu já disse que os brancos são meus.” Parávamos às vezes longo tempo, a cara imprensada nas grades, olhando. 
Começou assim. Numa dessas brincadeiras de “essa casa é minha”, paramos diante de uma que parecia um pequeno castelo. No fundo via-se o imenso pomar. E, à frente, em canteiros bem ajardinados, estavam plantadas as flores. 
Bem, mas isolada no seu canteiro estava uma rosa apenas entreaberta cor-de-rosa-vivo. Fiquei feito boba, olhando com admiração aquela rosa altaneira que nem mulher feita ainda não era. E então aconteceu: do fundo de meu coração, eu queria aquela rosa para mim. Eu queria, ah como eu queria. E não havia jeito de obtê-la. Se o jardineiro estivesse por ali, pediria a rosa, mesmo sabendo que ele nos expulsaria como se expulsam moleques. Não havia jardineiro à vista, ninguém. E as janelas, por causa do sol, estavam de venezianas fechadas. Era uma rua onde não passavam bondes e raro era o carro que aparecia. No meio do meu silêncio e do silêncio da rosa, havia o meu desejo de possuí-la como coisa só minha. Eu queria poder pegar nela. Queria cheirá-la até sentir a vista escura de tanta tonteira de perfume. 
Então não pude mais. O plano se formou em mim instantaneamente, cheio de paixão. Mas, como boa realizadora que eu era, raciocinei friamente com minha amiguinha, explicando-lhe qual seria o seu papel: vigiar as janelas da casa ou a aproximação ainda possível do jardineiro, vigiar os transeuntes raros na rua. Enquanto isso, entreabri lentamente o portão de grades um pouco enferrujadas, contando já com o leve rangido. Entreabri somente o bastante para que meu esguio corpo de menina pudesse passar. E, pé ante pé, mas veloz, andava pelos pedregulhos que rodeavam os canteiros.
                                       Clarice Lispector. In: “Felicidade Clandestina” – Ed. Rocco – Rio de Janeiro, 1998

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Como você imagina o final do texto? Escreva no espaço dos comentários.
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A Pandorah nos enviou um belo final para a história:

Tudo estava silencioso e tranquilo, agachei entre os galhos da roseira e comecei a quebrar o talo da flor. De pertinho a rosa era mais linda ainda! Entortei o talinho de um lado para o outro, dei uma torcidinha, entortei de novo e de novo! Estava verde e difícil de cortar com a ponta do dedo! Insisti entortando e torcendo o galho e pondo mais força consegui colher a flor e na pressa arranhei num dos espinhos.Pqp ardeu e sangrou! 

Já com a flor na mão, sai correndo agachadinha e feliz! Não me lembro se fechei o portão mas ganhei a rua em disparada, só parei quando cheguei em casa esbaforida! Entrei no quarto, cai na cama ofegante e mirei a flor. Como era linda, cheirosa e toda minha! Girei a flor , acarinhei , senti o perfume e antes de dormi, cantei Maria Cadu.

♫♫ Que dance a linda flor girando por aí
Sonhando com amor sem dor, amor de flor
Querendo a flor que é, no sonho a flor que vem
Ser duplamente flor, encanta colore e faz bem

♫♪Oh Flor, se tu canta essa canção
Todo o meu medo se vai pro vão
Pra longe, longe que eu não quero ir
Mas deixe seu rastro pólen, flor, pra eu poder seguir♪♫
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A  vez de Amora.Doce concluir o texto:
Quando cheguei ao canteiro, aproximei-me da rosa majestosa, espalhando seu perfume no ar. Quebrei a haste com uma certa dificuldade, mas nenhuma pétala soltou-se. Apossei-me da cor, do perfume, da altivez da rosa e senti-me uma rainha.Voltei a passos largos e, ao sair, observei a placa com o endereço: "Rua dos Imediatti, 45". Durante uma semana, pude admirá-la mas, aos poucos, despetalou. E, no lugar do encanto, um remorso fino bateu em meu peito por ter entrado na casa e roubado a rosa. Este sentimento voltava sempre e até mesmo em sonhos eu via a placa acusadora: "Rua dos Imediatti, 45"..Rua dos...Rua...", já era um pesadelo recorrente. Um ano se passou. Então, na Biblioteca da Escola, fazíamos um trabalho escolar e a professora distribuiu jornais, para que recortássemos notícias atuais. Um susto! Estou doida? Eu via novamente aquela placa, estampada sobre uma notícia: "PF PRENDE CORRUPTO QUE FRAUDOU O INSS"e, ao lado, a foto do dono da casa 45, Rua dos Imediatti, algemado e praticamente arrastado para o carro da Polícia Federal. Ele, o dono da casa maravilhosa, um corrupto, ladrão dos assalariados!
Bom, mediante o fato, meu remorso pelo roubo da rosa foi-se para sempre para o espaço, porque todo brasileiro sabe que ladrão que rouba de ladrão tem cem anos de perdão!
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Aqui o final da história escrita por Clarice Lispector:
Até chegar à rosa foi um século de coração batendo.

Eis-me afinal diante dela. Para um instante, perigosamente, porque de perto ela é ainda mais linda. Finalmente começo a lhe quebrar o talo, arranhando-me com os espinhos, e chupando o sangue dos dedos.

E, de repente - ei-la toda na minha mão. A corrida de volta ao portão tinha também de ser sem barulho. Pelo portão que deixara entreaberto, passei segurando a rosa. E então nós duas pálidas, eu e a rosa, corremos literalmente para longe da casa.
O que é que fazia eu com a rosa? Fazia isso: ela era minha.
Levei-a para casa, coloquei-a num copo d'água, onde ficou soberana, de pétalas grossas e aveludadas, com vários entretons de rosa-chá. No centro dela a cor se concentrava mais e seu coração quase parecia vermelho.
Foi tão bom.
Foi tão bom que simplesmente passei a roubar rosas. O processo era sempre o mesmo: a menina vigiando, eu entrando, eu quebrando o talo e fugindo com a rosa na mão. Sempre com o coração batendo e sempre com aquela glória que ninguém me tirava.
Também roubava pitangas. Havia uma igreja presbiteriana perto de casa, rodeada por uma sebe verde, alta e tão densa que impossibilitava a visão da igreja. Nunca cheguei a vê-la, além de uma ponta de telhado. A sebe era de pitangueira. Mas pitangas são frutas que se escondem: eu não via nenhuma. Então, olhando antes para os lados para ver se ninguém vinha, eu metia a mão por entre as grades, mergulhava-a dentro da sebe e começava a apalpar até meus dedos sentirem o úmido da frutinha. Muitas vezes na minha pressa, eu esmagava uma pitanga madura demais com os dedos que ficavam como ensanguentados. Colhia várias que ia comendo ali mesmo, umas até verdes demais, que eu jogava fora.
Nunca ninguém soube. Não me arrependo: ladrão de rosas e de pitangas tem 100 anos de perdão. As pitangas, por exemplo, são elas mesmas que pedem para ser colhidas, em vez de amadurecer e morrer no galho, virgens.
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Sobre a autora:

Clarice Lispector (1920-1977) foi escritora e jornalista brasileira, de origem judia, reconhecida como uma das mais importantes escritoras do século XX. "A Hora da Estrela" foi seu último romance, publicado em vida. Nasceu em Tchetchelnik na Ucrânia, no dia 10 de dezembro de 1920. Filha de família de origem judaica, Pinkouss e Mania Lispector. Sua família veio para o Brasil em março de 1922, para a cidade de Maceió, Alagoas, onde morava Zaina, irmã de sua mãe. Nascida Haia Pinkhasovna Lispector, por iniciativa do seu pai, todos mudam de nome, e Haia passa a se chamar Clarice.


Em 1925 mudam-se para a cidade do Recife onde Clarice passa sua infância, no Bairro da Boa Vista. Aprendeu a ler e escrever muito nova. Estudou inglês e francês e cresceu ouvindo o idioma dos seus pais o iídiche.


 
                                                                         Por Adele

6 comentários:

  1. Quem nunca roubou uma flor ou uma fruta de horta, que atire a primeira pedra! kkkkkkkkkkk Estou dando tratos à bola para descobrir se Clarice foi penalizada ou não e qdo. decidir escrevo meu final, Adele.

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    1. Realmente, Amora. Histórias de roubo de flor e principalmente de frutas fazem parte da vida de muita gente. Daria até para contar " causos muito engraçados" na seção "causos". E estamos esperando o seu desfecho na história de Clarice Lispector. Vamos lá!

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  2. Uau nada como ter uma cúmplice da magnitude de Clarice Lispector rs. Eu já confessei e paguei por ter surrupiado flor e mudas lá do Balneário, pêra e maçã verde nas terras do Zezinho Ireno. Recorri então à Ave Maria, ao Pai Nosso e ao Robim Hood ..,tô absolvida! 200 anos de perdão!!! tststs.
    Agora vou dar meu final pra essa travessura...

    Tudo estava silencioso e tranqüilo, agachei entre os galhos da roseira e comecei a quebrar o talo da flor. De pertinho a rosa era mais linda ainda! Entortei o talinho de um lado para o outro, dei uma torcidinha, entortei de novo e de novo! Estava verde e difícil de cortar com a ponta do dedo! Insisti entortando e torcendo o galho e pondo mais força consegui colher a flor e na pressa arranhei num dos espinhos.Pqp ardeu e sangrou!
    Já com a flor na mão, sai correndo agachadinha e feliz! Não me lembro se fechei o portão mas ganhei a rua em disparada, só parei quando cheguei em casa esbaforida! Entrei no quarto, cai na cama ofegante e mirei a flor. Como era linda, cheirosa e toda minha! Girei a flor , acarinhei , senti o perfume e antes de dormi, cantei Maria Cadu.

    ♫♫ Que dance a linda flor girando por aí
    Sonhando com amor sem dor, amor de flor
    Querendo a flor que é, no sonho a flor que vem
    Ser duplamente flor, encanta colore e faz bem

    ♫♪Oh Flor, se tu canta essa canção
    Todo o meu medo se vai pro vão
    Pra longe, longe que eu não quero ir
    Mas deixe seu rastro pólen, flor, pra eu poder seguir♪♫

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  3. Quando cheguei ao canteiro, aproximei-me da rosa majestosa, espalhando seu perfume no ar. Quebrei a haste com uma certa dificuldade, mas nenhuma pétala soltou-se. Apossei-me da cor, do perfume, da altivez da rosa e senti-me uma rainha.Voltei a passos largos e, ao sair, observei a placa com o endereço: "Rua dos Imediatti, 45". Durante uma semana, pude admirá-la mas, aos poucos, despetalou. E, no lugar do encanto, um remorso fino bateu em meu peito por ter entrado na casa e roubado a rosa. Este sentimento voltava sempre e até mesmo em sonhos eu via a placa acusadora: "Rua dos Imediatti, 45"..Rua dos...Rua...", já era um pesadelo recorrente. Um ano se passou. Então, na Biblioteca da Escola, fazíamos um trabalho escolar e a professora distribuiu jornais, para que recortássemos notícias atuais. Um susto! Estou doida? Eu via novamente aquela placa, estampada sobre uma notícia: "PF PRENDE CORRUPTO QUE FRAUDOU O INSS"e, ao lado, a foto do dono da casa 45, Rua dos Imediatti, algemado e praticamente arrastado para o carro da Polícia Federal. Ele, o dono da casa maravilhosa, um corrupto, ladrão dos assalariados!
    Bom, mediante o fato, meu remorso pelo roubo da rosa foi-se para sempre para o espaço, porque todo brasileiro sabe que ladrão que rouba de ladrão tem cem anos de perdão!

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