Baptista-Bastos
Nos olhos dela habitava a bondade. Um doce sorriso embalava-lhe os lábios, e a
face transparecia a tranquilidade interior de quem não fora punida pelo
despeito nem agredida pelo ressentimento. Era ainda nova: vivia na linha de
sombra que tenuemente divide a idade das pessoas, entre maduras e velhas. De
onde viera? Que idade tinha? Ninguém sabia. Por vezes, pintava os lábios
murchos. Por vezes, exibia largos decotes e mangas cavadas, eis o traço lascivo
dos seios, eis os braços roliços, opulentos e sensuais. Era alta, quase
imponente; porém, quando subia a rua íngreme, parecia alada, os pés quase não
tocavam no chão.
Aparecera no bairro e logo se organizara uma aura de mistério em sua volta. Apesar da estatura, mantinha-se discreta e reservada, pouco falava com os vizinhos. Havia dias em que cantava; cantava alto velhas canções de amor. Nas tardes de sábado, os homens reuniam-se no clube, jogavam ao loto e à sueca e, ocasionalmente, embebedavam-se.
Aparecera no bairro e logo se organizara uma aura de mistério em sua volta. Apesar da estatura, mantinha-se discreta e reservada, pouco falava com os vizinhos. Havia dias em que cantava; cantava alto velhas canções de amor. Nas tardes de sábado, os homens reuniam-se no clube, jogavam ao loto e à sueca e, ocasionalmente, embebedavam-se.
Ela residia num pequeno apartamento, mesmo por cima do clube. Gostava de se
colocar à varanda, e os homens fitavam-na, gulosos, ávidos e sôfregos. Fingia
não os ver. As mulheres remoíam raivas e amuos. Ela observava o horizonte, lá,
onde o Tejo forma uma laçada, e permanecia assim: abstracta, atenta e exposta.
Mas gostava que a apreciassem, e divertia-se com o ciúme das outras. Às vezes
dançava ao som de uma pequena telefonia. Dançava como se estivesse a dançar com
o mundo, ou, quem sabe?, a pensar em alguém que amara.
As geografias sentimentais são mais ou menos favoráveis: o bairro era bom e
valia tudo o que de ele se dissesse; o resto era mau, e tudo o que de pior se
dissesse nunca seria excessivo. Começaram as intrigas, as suposições pérfidas,
as calúnias evasivas. Não lhe perdoavam a beleza, a dignidade da postura, a
pequena viração de altivez que dela se desprendia.
Suspeitaram de tudo: que era prostituta, que vivia às custas de um proprietário
de imóveis, que fazia números de nu em cabarés rascas. Chegou-lhe aos ouvidos a
natureza insidiosa desses boatos. Não lhes atribuiu a menor importância, o que
ainda mais arreliou as outras.
Saía de casa logo pela manhã, regressava tarde, ocasionalmente ausentava-se
pela noite. Acumulavam-se as suspeições. Até que, certo dia, deixou de
aparecer. O falatório aumentou. Coisas medonhas foram ditas, como se de
verdades se tratassem. Correu o tempo; uma semana passou, outra, e outra ainda.
Para onde fora? Que seria feito dela? E se ele não regressasse, não pudesse
regressar ou não quisesse regressar?
Depois, houve quem a visse. Era numa tarde em que a chuva, lamentosa, caía
forte. Desapareceu no cotovelo da rua, quem a viu acelerou o passo para
descortinar aonde ela ia. Entrou num prédio alto e antigo, de azulejos, e ao
perseguidor assaltou a ideia de que a vizinha misteriosa talvez fosse
mulher-a-dias. Este indivíduo tivera, em tempos, a veleidade de se relacionar
com ela; porém, fora rejeitado com uma frase breve e ríspida. Era o
ressentimento que o incitara àquela infausta perseguição.
Horas e horas decorreram. A chuva deixara de cair, o homem encostara-se a uma
árvore, sem abandonar a vigilância ao prédio. Até que, finalmente, ela
reapareceu. Olhou em derredor e, rapidamente, aproximou-se da árvore onde o
outro se ocultava. Atrapalhou-se, o homem. E ela disse:
— Quer saber o que eu faço, não é?
— Bom…bom — Não sabia o que responder.
— Olhe: vendo ternura.
E desandou. Agora, uma brisa mansa, um vento acariciador, um pio de ave, e o
silêncio. Era assim: todos os dias, ou quase, ela visitava casas de gente
idosa, e recebia escassos euros para lhes ler jornais, revistas ou livros de
histórias cordatas com finais felizes. Simplesmente um pouco de ternura.
Voltou à rua para se despedir da rua e ignorar as pessoas. As pessoas
juntaram-se, viram-na subir o calçadão, puxar pelas pernas para escalar a
escadaria enorme. Durante algum tempo pensaram nela. Nunca ninguém soube o seu
nome, nem se foi feliz na vida.
Anos depois, um modesto cronista contou-a numa crônica humilde.
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Sobre o autor:
Armando Baptista-Bastos (1934), é considerado um dos maiores prosadores portugueses contemporâneos. Iniciou-se como jornalista no jornal “O Século”, tendo trabalhado também no”República,”, “Europeu”, “O Diário”, “Diário Popular” e nas revistas “Cartaz”, “Almanaque”, “Época” e “Sábado”. Foi, igualmente, redator em Lisboa da Agência France Press. Usando o pseudônimo de Manuel Trindade, trabalhou na RTP – Rádio e Televisão de Portugal, nos tempos do governo de Marcelo Caetano. Foi despedido por ter sido considerado um “adversário do regime”. Porém, é no vespertino “Diário Popular”, onde trabalhou durante vinte e três anos (1965-1988), e no qual desempenhou importantes funções, que deixa sua marca,"com um estilo inconfundível" — no dizer de Adelino Gomes. Foi docente na Universidade Independente, onde lecionou a disciplina de Língua e Cultura Portuguesas. Percorreu, profissionalmente, todo o Portugal Continental e Insular, e viajou e escreveu sobre Espanha, Canárias, França, Itália, Bélgica, Irlanda, Brasil, Uruguai, Argentina, Suíça, Luxemburgo, Grécia, Áustria, Turquia, República Democrática Alemã, República Federal da Alemanha, Checoslováquia, URSS, Marrocos, Suécia, Dinamarca, Finlândia, Nigéria, Angola, Moçambique, Cabo Verde, etc.
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Por Adele
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