Humberto Werneck
— E ela é bonita?
Perguntei
por perguntar, sou mesmo muito perguntador, mas ele reagiu como se eu tivesse
lhe aplicado um choque.
Até
aquela altura da conversa, só ele falava, enfático, preenchendo com sua
gesticulação desgalhada um vasto espaço em torno, por pouco não me acertando,
em sua exuberância, uns involuntários tabefes. O assunto obsessivo era a moça,
as inigualáveis qualidades da moça, e para enumerá-las meu amigo se
esparramava, equilibrando-se à beira do ridículo. Às vezes empacava, sem
palavras para descrever o indescritível, e a empolgação se metamorfoseava em
algo que lembrava o ar beatífico, meio abobalhado, de quem, entre os banhistas,
despistadamente faz xixi no mar.
— Bonita? — insisti.
Como
num desses programas de TV em que a resposta vai levar à fortuna ou ao
infortúnio, ele franziu os lábios numa rosquinha pregueada, apanhou o queixo
entre dois dedos, revirou os olhos para o alto, ruminativo — e por fim
desembuchou, numa hesitação tamanha que dava para ver uns hifens pingando entre
as sílabas:
— Ela é... interessante.
Bem
que eu desconfiava: a moça era feia. Prendada, virtuosa, trabalhadora, o diabo
— mas bonita não era. Se fosse, não haveria lábios franzidos, dedos beliscando
o queixo nem olhos perscrutando os céus: bonita é bonita, ponto. E interessante
— as muito interessantes que me perdoem — está mais para feia. Se a gente
recorre a esse adjetivo, é para camuflar uma ausência de formosura.
(Antes que me acusem
de machismo: vale também, é claro, para o sexo masculino, só que marmanjo não
está socialmente obrigado à formosura.)
Não
é tão simples assim, eu sei. No extenso território que vai da beleza à feiura,
há de tudo e um pouco mais. Meu avô achava que a balança pendia decididamente
para um lado, e me lembro, menino, da observação que fez enquanto esperávamos,
no centro de Belo Horizonte, abrir-se o sinal para os pedestres. “Meu filho,
como a humanidade e feia!”, sussurrou ele, olhos na manada que, no lado oposto,
também engatilhava o bote. Ressentimento? Não, o vovô Santos era um belo homem.
Arrogância, também não, pois não lhe faltava compaixão pelo ser humano, aí
incluídos os bonitos. Sua observação tinha o corte frio das constatações
empíricas.
Talvez
num centro de cidade, em países como o nosso, a humanidade, vivendo à margem
dos spas, academias e salões de beleza, à margem sobretudo das proteínas
consumidas desde o berço, penda mesmo para a fealdade. Mas sempre se podem
comparar coisas comparáveis. No centro, como nos redutos ricos, pessoas há que
são flagrantemente bonitas e outras insofismavelmente feias. Há também — e aqui
a coisa se torna um tanto mais sutil — gente que é bonita-aos-poucos e gente
que é feia-aos-poucos.
Não
é caso, por favor, de sair correndo rumo ao próximo espelho. Você sabe do que
estou falando. Daquelas pessoas que, no primeiro contato, nos parecem feias ou
bonitas, e que, com o correr do tempo, às vezes pouquíssimo tempo, vão mudando
de lugar em nosso espectro estético. Os olhos não são belos, o nariz é um nariz
qualquer e as orelhas, de abano ou com os lóbulos por demais grudados à cabeça
— mas, de repente, a reunião desses “aparelhinhos”, como dizia minha mãe, vai
compondo um arranjo potável, daqui a pouco apetecível, quem sabe mesmo, no
final da noite, irresistível. Também o contrário pode se passar: a progressiva
sem-graceza de um conjunto formado por peças que, individualmente, são
irretocáveis — e a pessoa que nos parecia linda vai assumindo um feiume tão
insuspeitado quanto inapelável, até tornar-se, no máximo, interessante. Mais do
que com os “aparelhinhos”, num caso como no outro o ajuste de foco tem a ver
com encantos imateriais, imponderáveis — com a presença, quase sempre, do
misterioso atributo que se chama borogodó, invisível para os olhos. Razão pela
qual devo insistir: inútil você sair correndo para conferir no espelho.
Extraído do livro "O espalhador de passarinhos
& outras crônicas", Ed. Dubolsinho - Sabará (MG), 2010, págs. 81 a 83.
Ilustrações de Sebastião Nunes.
Fonte: http://www.releituras.com/h_werneck_menu.asp
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