Depois de muita e boa chuva,
Célia voltava de Belo Horizonte para sua casa no interior do Estado. Era bom
viajar de ônibus, vendo, parecia-lhe que pela primeira vez, o verde rebrotando
com força.
Ouviu um passageiro falando pra
ninguém: que cheiro de mato! Sol farto e os moradores desses conjuntos
habitacionais de caixa de papelão e zinco, que brotam como grama à margem das
rodovias, aproveitavam pra esquentar o couro rodeados de criança e cachorro. Os
deserdados desfilavam, a moça e seu namorado com bota de imitação de peão
boiadeiro iam de mãos dadas, com certeza à casa de uma tia da moça, comunicar
que pretendiam se casar. Uma avó gorda com seu neto também passou, ela de
sombrinha, ele de calcinha comprida de tergal. Iam aonde? Célia fantasiou, ah,
com certeza na casa de uma comadre da avó, uma amiga dela de juventude. O
menino ia sentir demais a morte daquela avó que lhe pegava na mão de um jeito
que nem sua mãe fazia. Desceram três moços de bermuda e camisa do Clube
Atlético Mineiro, e um quarto com grande inscrição na camiseta: SÓ CRISTO
SALVA! Camiseta e bermuda não favorecem a ninguém, ela pensou desgostosa com a
feiúra das roupas. Bermudas principalmente, teria que se ter menos de dez anos
pra se usar aquela invenção horrorosa. Teve dó dos moços que só conheciam
futebol e dupla sertaneja. Foi um pensamento soberbo, se arrependeu na hora.
Tinha preconceitos, lembrou-se de que gostara muito de um jogo de futebol em
Londrina, rodeada de palavrões e chup-chup com água de torneira e famílias
inteiras se esturricando gozosamente entre pão com molho e adjetivos brutais,
prodigiosamente colocados, lindos e surpreendentes como as melhores invenções
da poesia. Concluiu sonolenta, o mundo está certo. Uma criança começou a chorar
muito alto: quero ficar aqui não, quero sentar com meu pai, quero o meu pai. A
mãe parecia muito agoniada e pelo tom do choro Célia achou que ela abafava a
boca da criança com uma fralda ou a apertava raivosa contra o peito,
envergonhada de ter filha chorona. Suposições. Tudo estava muito bom naquele
dia, não sofria com nada, nem ao menos quis ajudar a mãe, botar a menina no
colo, estas coisas em que era presta e mestra. Assistia ao mundo, rodava macio
tudo, o ônibus, a vida, nem protagonista nem autora, era figurante, nem ao
menos fazia o ponto naquele teatro perfeito, era só platéia. Aplaudia, gostando
sinceramente de tudo. Contra céu azul e cheiro de mato verde Deus regia o
planeta. Estava muito surpresa com a perfeita mecânica do mundo e muitíssimo
agradecida por estar vivendo. Foi quando teve o pensamento de que tudo que
nasce deve mesmo nascer sem empecilho, mesmo que os nascituros formem hordas e
hordas de miseráveis e os governos não saibam mais o que fazer com os sem-teto,
os sem-terra, os sem-dentes e as igrejas todas reunidas em concílio esgotem
suas teologias sobre caridade discernida e não tenhamos mais tempo de atender à
porta a multidão de pedintes.
Ainda assim, a vida é maior, o
direito de nascer e morar num caixote à beira da estrada. Porque um dia, e pode
ser um único dia em sua vida, um deserdado daqueles sai de seu buraco à noite e
se maravilha. Chama seu compadre de infortúnio: vem cá, homem, repara se já viu
o céu mais estrelado e mais bonito que este! Para isto vale nascer.
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Sobre a autora:
Adélia Luzia Prado de Freitas, mais conhecida apenas como Adélia Prado (Divinópolis 13 de dezembro de 1935)é uma poetisa,professora,filósofa e contista brasileira ligada ao Modernismo .
Seus textos literários retratam o cotidiano com perplexidade e encanto, norteados pela fé cristã e permeados pelo aspecto lúdico, uma das características de seu estilo único. Em 1976, enviou o manuscrito de Bagagem para Affonso Romano de Sant'Anna que exercia na imprensa crítica literária assinando uma coluna no Jornal do Brasil. Admirado, acabou por repassar os manuscritos a Carlos Drummond de Andrade, que incentivou a publicação do livro pela Editora Imago em artigo do mesmo periódico .
Professora por formação, ela exerceu o magistério durante 24 anos, até que a carreira de escritora tornou-se a atividade central. Em termos de literatura brasileira, o surgimento da escritora representou a revalorização do feminino nas letras e da mulher como ser pensante, tendo-se em conta que Adélia incorpora os papéis de intelectual e de mãe, esposa e dona-de-casa.
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Por Adele
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